PUBLICIDADE

Análise - Sobre a votação do impeachment na Câmara dos Deputados

Texto publicado originalmente no Estadão Noite

Por Murilo Gaspardo
Atualização:

Considerando-se o aprofundamento da crise econômica - que provoca maior sofrimento nos mais pobres, a hipocrisia do governo petista - com seu discurso de ‘repactuação’ (ou tentativa de permanecer no poder valendo-se dos mais baixos recursos disponíveis na política) e, ainda, a cada vez mais clara demonstração de que, assim como a maioria dos outros partidos, o PT chegou e permaneceu no poder valendo-se de um ‘sistema ilegítimo e ilegal de financiamento do sistema partidário-eleitoral’ (para utilizar expressão do pessoal da Odebrecht), confesso que tenho feito um esforço para entender que o impeachment seria a melhor solução para a crise político-econômica brasileira. Até porque um governo não obtém legitimidade definitiva ao ser eleito: o consenso social também precisa ser demonstrado ao longo do exercício do poder e, na lição de Luigi Ferrajoli, no Estado de Direito, a legitimidade é sempre “a posteriori, parcial e contingente”, ou seja, precisa ser conquistada a cada dia pelas lideranças políticas.  Então me pergunto: (1) se a razão do impeachment for os alegados ‘crimes fiscais’ - portanto, uma razão econômica -, será que o programa alternativo (proposto por PMDB e PSDB) é o que espera o povo que ocupa as ruas a clamar pelo impeachment e, sobretudo, aqueles que não foram às ruas (pesquisas demonstram que os mais pobres representam ínfima parcela dos manifestantes)?; (2) se a razão do impeachment for corrupção, será que Eduardo Cunha tem autoridade moral e legitimidade para presidir o processo? Será que a maioria do Congresso Nacional tem autoridade moral e legitimidade para impedir a presidente? Se Eduardo Cunha permanecer no poder, não será com o consentimento da maioria dos deputados que, aliás, foram seus eleitores? Não são esses deputados também financiados pelo mesmo ‘sistema ilegítimo e ilegal’?  A questão não é justificar delitos e erros políticos. Delitos devem ser respondidos perante a Justiça. Erros políticos devem ser respondidos nas urnas, na pressão popular, no debate público. O problema é que quando se trata de questões de poder, não é possível discutir separadamente quem vai sair e quem vai entrar - as questões são conexas. Que o vice-presidente e a maioria de seu partido agem como golpistas, parece-me claro. Mas o discurso de traição apresentado pelo governo é muito frágil - pois não foram enganados, estiveram juntos por muito tempo e sabiam com quem estavam lidando. Por outro lado, o PMDB não pode alegar agora que “não sabia de nada”, que não tem nada a ver com os erros de um governo no qual teve (e tem) enorme participação. O ponto é: Temer/PMDB seriam mais legítimos e teriam algo de melhor a oferecer ao Brasil do que Dilma/PT? Repito: o impeachment não é simplesmente um julgamento da atual presidente, mas sua substituição pelo vice, Michel Temer, parceiro do presidente da Câmara Eduardo Cunha e aliado das velhas e novas oligarquias brasileiras.  Os descontentes com o governo têm motivos de sobra para ir às ruas e toda a legitimidade democrática para fazê-lo. Porém, será que estamos condenados a um horizonte tão cruel de expectativas - ou o caos atual ou os sacrifícios prometidos por Temer para preservar os interesses das elites? Equilíbrio fiscal não é bandeira de direita, é uma exigência de um governo responsável e um bem para a sociedade e a economia. O problema é outro: quem paga a conta desse equilíbrio? A única alternativa seria restringir direitos sociais e tributar os mais pobres? Não seria possível pensar em tributar grandes heranças, grandes fortunas, o grande capital financeiro? Quais forças políticas e sociais brasileiras teriam a coragem de responder positivamente (e com sinceridade) a última pergunta? Enfim, que a democracia e o Estado de Direito sobrevivam e saiam fortalecidos deste processo, o que, certamente, não é o cenário mais provável. 

* Murilo Gaspardo é professor de Teoria do Estado da Unesp/Câmpus de Franca

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.