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Análise - Trevas

Texto publicado originalmente no Estadão Noite

Por Rafael R. Ioris
Atualização:

Se é que ainda está viva, a Nova República passa hoje pela sua maior crise. Fundado em um arranjo tímido entre as elites políticas de então, nosso sistema político foi forjado no final da ditadura no intuito específico de permitir a transição para uma ordem legal formalmente democrática, mas não necessariamente inclusiva e igualitária. Na prática, sua lógica sempre foi a das concertações ad hoc, estabelecidas com o fim de garantir apoios parlamentares mínimos, cambiantes e maleáveis.  Mas ainda que muitas destas operações se baseassem na famosa deturpação do dito franciscano, de é dando que se recebe, tínhamos, pelo menos, a sensação de que partilhávamos, todos, da noção do valor intrínseco da legitimidade democrática. Não parece mais ser esse o caso! De fato, se é se algum dia tivemos um amplo consenso nacional em prol da democracia, o que temos presenciado nos últimos meses e, especialmente ao longo dos últimos dias, é a mais clara expressão de que precisamos renovar nosso compromisso democrático assim como reformar as instituições formais da ordem política vigente.  Nossa transição para a democracia sempre foi sofrida e, como queriam os ditadores, lenta, controlada, gradual e, acima de tudo, insuficiente. Ainda assim, até pouco tempo, as coisas pareciam funcionar, no sentido da sustentação do arranjo, pois tínhamos no horizonte, pouco ou mais distante, a sensação de que progredíamos e que algo melhor seria possível. Ao longo dos anos 80, a perspectiva de uma nova constituição e os novos ares possibilitados pela retomada da livre expressão nos ocupavam e, talvez ainda que ingenuamente demais, davam razão pra prosseguir. Nos anos 90, a necessidade de ajustes econômicos e ainda presente ameaça inflacionária nos mantinha envolvidos e ativos em fortes debates sobre distintos projetos nacionais, mas não questionávamos, de maneira contundente, a própria lógica do jogo democrático. Talvez algo que acima de tudo permitia que, ao longo de todo esse processo, pudéssemos avançar, a eterna, ainda que por vezes fugidia, promessa de um governo que efetivamente fosse visto como uma expressão genuína do povo era o mote permanente para uma grande parte dos setores sociais organizados que, assim, também partilhavam da aceitação das regras do arranjo da democracia formal. A se refletir sobre o que temos visto recentemente, contudo, temos a sensação de talvez estarmos no limiar da possibilidade de um rompimento do que parecia ser até então uma cultura política democrática em acelerada consolidação. Não só temos presenciado a repetição de casuísmos legais altamente questionáveis a fim de promover causas de interesse partidário ou mesmo pessoal (como conter investigações e processos), promovidos pelas mais altas figuras políticas do País, como o presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha, como assistimos no domingo a um verdadeiro escrache do próprio papel investigativo daquela mesma Casa quando a grande maioria de seus membros votava pela aceitação de uma denúncia em favor do impedimento da presidente da República em nome das causas mais absurdas, menos em razão da denúncia em questão. Além disso, ao agirem assim, esse mesmos deputados, dada a questionável denúncia em questão, acabarem por afrontar a própria Constituição ao estabelecer, sem o devido processo legal, a modalidade do 'recall' no ordenamento jurídico do País. Pior, quando grande parte desses mesmos líderes políticos aplaude um de seus membros, o deputado Jair Bolsonaro, pelo seu voto em homenagem ao maior torturador da história do País, jogou-se no lixo todo o possível compromisso do Estado pela democracia e pelos direitos humanos. Quando o que deveria ser inominável é trivializado e, assim, possivelmente aceito, adentramos na irracionalidade e no caos. Temo que, se não encontrarmos formas de resgatar nosso compromisso com o Estado Democrático de Direito, estaremos não só jogando às favas nossos escrúpulos de consciência, como também nossa própria capacidade de indignação com o horror. Se for esse o caso, o que nos restará será a barbárie e as trevas!* Rafael R. Ioris é brasileiro, professor de história e política Latinoamericana na Universidade de Denver   

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