Análise: Separatismo curdo é árduo desafio para Turquia e EUA

Vitória de Erdogan não dissipa tensões internas e na política externa.

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Por Caio Blinder
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A estratégica localização geográfica da Turquia contribui de forma crucial para explicar sua constante busca de identidade. O país faz fronteira com a União Européia, ao oeste, e com países como Iraque, Síria e Irã ao leste e ao sul. Estar nesta encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente ficou mais uma vez patente nas eleições parlamentares antecipadas para o domingo passado devido ao conflito entre o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan (do Partido Justiça e Desenvolvimento, de raízes islâmicas) e o establishment secular, liderado pelo Exército. No poder desde 2002, o partido de Erdogan triunfou no domingo, mas isto não dissipa as tensões internas e na política externa. O Iraque é vital, especialmente devido às ameaças do Exército turco de cruzar a fronteira à cata de rebeldes separatistas curdos, que têm bases naquele país na região quase independente do Curdistão e que nas suas incursões desde o começo do ano mataram mais de 200 soldados turcos. Dentro da Turquia, os curdos perfazem 20% da população e o temor é de que o se passa no Curdistão reforce ainda mais as aspirações nacionalistas da minoria. Este desafio curdo apenas complica ainda mais a vida de Erdogan. Ele triunfou nas eleições, mas precisa conviver com a realidade institucional de uma Constituição secular, que tem o inquieto Exército como guardião. Tal papel levou o Exército a ter um prontuário golpista nas últimas décadas diante das ameaças à secularização forjada das ruínas do Império Otomano. Até agora, Erdogan resistiu aos apelos militares para que as tropas cruzem a fronteira com o Iraque. No mês passado, 140 mil soldados turcos foram mobilizados nesta fronteira. Erdogan disse que "na nossa luta contra os terroristas separatistas nós estamos determinados a tomar cada passo na hora certa", advertindo que haverá uma incursão se fracassarem as conversações com as autoridades iraquianas e americanas. Erdogan tem um mandato indiscutível, mas outra complicação foi o fortalecimento nas eleições de domingo do Partido de Ação Nacionalista, de direita, que está na linha de frente da hostilidade contra os curdos (e também a minoria armênia) e expressa com virulência os sentimentos antiamericanos e antieuropeus na Turquia. Mais complicação: políticos curdos que concorreram como independentes retornaram ao Parlamento turco pela primeira vez em 15 anos. Há muito ressentimento contra os EUA na Turquia não apenas pela invasão do Iraque, mas porque este virtual Estado curdo (relativamente próspero e estável em comparação ao resto do país) ascendeu sob proteção militar americana. Aliás, em nenhum país os americanos são tão impopulares como na Turquia. Esta é a conclusão inglória de uma pesquisa divulgada em junho pelo instituto Pew. Na pesquisa global, apenas 9% dos turcos disseram ter uma opinião favorável dos EUA. Foi a pior marca entre os entrevistados de 47 países. Ironicamente este ressentimento antiamericano une praticantes muçulmanos e setores seculares na Turquia, em um sentimento que se estende à União Européia devido às reticências para a aceitação turca no clube continental. Apesar das reticências européias para uma plena aceitação, a Turquia sempre foi uma leal integrante da Otan (a aliança militar ocidental). Mas os americanos e os europeus se opõem a estas movimentações militares turcas na fronteira com o Iraque e muito mais à possibilidade de que ocorram incursões contra os separatistas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Uma invasão empreendida pelo segundo maior Exército da Otan, antes de tudo, iria desestabilizar a única relativa história de sucesso no Iraque pós-invasão. Ademais, seria um desastre nas relações da Turquia com os EUA e os europeus. Na edição desta semana, em uma extensa reportagem sobre as eleições turcas, a revista The Economist ressalta que Erdogan não só resiste a um ataque militar contra os separatistas curdos no Iraque mas à visão apocalíptica de nacionalistas turcos de que a própria sobrevivência do país depende da contenção deste separatismo curdo. Na visão de Erdogan, o ideal seria uma "grande barganha": os turcos reconheceriam o status semi-independente dos curdos iraquianos desde que os militantes separatistas curdos na Turquia abandonem a luta armada e respeitem a fronteira turca. Seria o fim da encruzilhada para os americanos. Eles não precisariam escolher entre seus aliados turcos e curdos. Falta combinar a tática deste jogo com os inquietos generais turcos. A Turquia continua na encruzilhada. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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