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Apologia do boné

Lei que veta uso do acessório no Rio violenta um símbolo de identidade da periferia

Por MV Bill
Atualização:

MV Bill, rapper, documentarista e escritor carioca, é co-autor, com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares, de'Cabeça de porco' (Objetiva, 2005). Seu último CD é 'Monstrão' (2012). 

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Vivemos numa época assustadoramente violenta. Sair para o trabalho ou mesmo para comprar pão podem se tornar verdadeiras aventuras. Para ser franco, meus pais diziam o mesmo do tempo deles. Mas é fato que passam os anos e as formas de violência no Brasil tomam novos contornos. As pessoas têm medo de sair de casa e até de ficar em casa. Nesse caos diário, é preciso que a sociedade dê respostas em diversas áreas, como segurança e ética, entre outras - já que não é possível conviver com tantas anomalias sem reagir. No entanto, medidas totalitárias não são bem-vindas. Medidas que reforcem o preconceito e a discriminação não são bem-vindas. E medidas que só atingem grupos historicamente marginalizados também não são bem-vindas. 

Uma delas, a meu ver, é a bem-intencionada lei estadual que entrou em vigor no sábado, dia 17, no Rio. Em termos gerais, a lei 6.717/14, de autoria da deputada estadual Lucinha (PSDB-RJ), proíbe “o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabelecimentos comerciais, públicos ou abertos ao público”. A justificativa da autora do projeto é “impedir que criminosos tentem driblar as câmeras de segurança durante abordagens e assaltos”, como afirmou em uma entrevista. 

Não tenho nada contra a deputada, inclusive acho coerente que as pessoas sejam proibidas de andar com rostos cobertos fora do carnaval e das manifestações populares. Em minha opinião isso deve mesmo ser proibido, pois significa um risco à segurança. No que se refere especificamente aos bonés, diz a redação da lei: “Os bonés, capuzes e gorros não se enquadram na proibição, salvo se estiverem sendo utilizados de forma a ocultar a face da pessoa”.

É aí que vejo o problema. A expressão “salvo se estiverem sendo utilizados” dá margem a uma subjetividade na interpretação da lei que não me agrada em nada. Nem a mim nem a nenhum dos milhões de brasileiros historicamente marginalizados que sabem, desde pequenos, que a tal da subjetividade nunca será favorável a nós. É a subjetividade que nos impede de ser bem atendidos em uma loja de grife. A subjetividade no Brasil é construída no contexto de uma sociedade que nivela pobres a marginais que estão sempre na iminência de cometer algum delito - aguardando apenas uma oportunidade e uma forma de se esconder.

Não podemos incluir uma manifestação cultural como é o uso de bonés numa esfera de critérios que nada tem de objetiva, nem está expressa na referida lei. Particularmente, não consigo imaginar os seguranças do Jockey Clube apreendendo os lindos chapéus dourados das socialites cariocas ou paulistanas com o argumento de que seus olhos precisam ser vistos pelas câmeras de segurança. Tão pouco os empresários que igualmente desfilam seus chapéus importados pelas tribunas da vida. 

Não estou aqui fazendo uma comparação apressada entre “os bacanas” e a periferia, nem estou dizendo que a lei em si vá contra os jovens das favelas. Estou chamando a atenção para uma reflexão que os parlamentares devem fazer sempre, antes de votar uma lei: ouvir todos os interessados, para levar em conta os hábitos e costumes de um povo. Como no Jockey Clube, em que os chapéus de luxo fazem parte de uma cultura - e suprimi-los seria uma violência contra ela -, no caso dos jovens de periferia ligados ao funk, ao rap e todas as manifestações culturais do hip-hop, o boné faz parte de uma cultura real, de construção de identidade, resistência e atitude. 

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Não é de hoje que esses jovens sofrem com a agressividade de policiais que, em suas batidas, identificam os que usam bonés com bandidos. O boné incomoda talvez por ser exatamente um equipamento que identifica a origem e o orgulho dessas pessoas. Não seria o caso de ouvi-las antes de elaborar e votar uma lei como a 6.717/14? Mas não. O que ocorreu foi uma opção pela subjetividade de quem vai arbitrar sobre esse tema e julgar se o boné esta ou não dentro dos padrões da lei: gerentes de estabelecimentos comerciais, seguranças privados e policiais.Não estamos aqui reproduzindo a lógica do “sabe com quem você tá falando”?

Eu também quero viver em um lugar seguro, onde o comércio funcione tranquilamente e as pessoas, seja nas favelas, nas periferias ou nos centros urbanos, tenham os mesmos direitos de ir e vir em paz. E tenham, inclusive, os mesmos direitos de terem suas culturas preservadas. 

Faço aqui uma “apologia” do boné porque não vou deixar de usar e não vou permitir que me achem um bandido por isso, como sempre acharam. Não me posiciono contra a lei para criar polêmica, mas porque penso de verdade que bonés, assim como outros tipos de chapéu e quaisquer peças de vestuário fazem parte de períodos históricos determinados e identificam pessoas e grupos que não podem ficar sob o julgamento arbitrário de cada um. 

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Da mesma forma que peças memoráveis como a boina de Che Guevara, o chapéu-coco de Charlie Chaplin ou o chapéu de frutas de Carmem Miranda marcaram época, também poderemos lembrar dos bonés que meus amigos Dexter e Mano Brown, assim como tantos outros MCs, sempre usaram - e se tornaram referência para muitas pessoas. Seja o chapéu do Gog, rapper de Brasília, ou o do grande mestre Cartola, da Mangueira, cobrir a cabeça com histórias não pode ser sinônimo de cobrir o rosto de vergonha - por terem te impedido de circular com algo que, para muitos, é quase uma parte do próprio corpo.

Leis foram feitas para serem cumpridas, mas também emendadas, questionadas ou revogadas. Acredito que a intenção foi boa e torço para que ela dê certo. Porém, seus critérios de aplicação têm que estar expressos na própria lei e não baseados no que cada um acredita. Se for assim, aí tiro o meu boné pra lei.

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