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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Aprender a improvisar

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Atualização:

Às vezes temos a impressão de que tudo no País é feito no improviso. As decisões saem no atropelo em todos os níveis, da administração federal à doméstica. O que era totalmente previsível parece nos surpreender, levando à busca de soluções às pressas, com evidente prejuízo da qualidade. É uma pena. Sobretudo porque não é essa a essência do improviso. Por mais paradoxal que pareça, precisamos aprender a improvisar no Brasil.

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Começou nesta quinta-feira e vai até o último fim de semana do mês, o Festival Jazz na Fábrica, promovido anualmente pelo Sesc. Há atividades em várias unidades, mas o epicentro é no Sesc localizado no bairro paulistano da Pompeia, que funciona em um prédio projetado por Lina Bo Bardi nas instalações de uma antiga fábrica de tambores – daí o nome do festival. Sua curadoria caprichada permite aos admiradores do gênero – que como eu se lamentam o ano todo por não termos tempo ou competência para nos mantermos antenados com as tendências do estilo – travarmos contato com o que de melhor se está produzindo no mundo.

Um dos elementos centrais no jazz é justamente o improviso. Poucos estilos musicais oferecem tanto tema para debates sérios, por vezes acalorados, sobre suas origens, definições e ramificações. Mas poucos discordam que, quando não há improvisação, dificilmente é jazz.

Engana-se, no entanto, quem acredita que basta sair tocando qualquer coisa que vier à cabeça, sem se preparar previamente, para se criar um improviso. O ator e comediante americano H. J. Benjamin, a voz por trás do protagonista da hilária série de animação Archer, bem que tentou.

Sem formação musical, sem saber tocar nenhum instrumento e sem gostar de jazz, ele convenceu alguns músicos profissionais a gravar, com ele ao piano, o álbum de jazz Well, I Should Have... Learned to Play the Piano (Bem Eu Deveria Ter... Aprendido a Tocar Piano). O resultado é mais um álbum de comédia do que de música – toda vez que entra o piano, dá vontade de rir. Claro, porque isso não é improvisar. Bom, talvez seja improvisar à brasileira. Tanto já se falou que este país é uma piada, afinal.

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Preparação. A verdadeira improvisação jazzística depende de muita, muita preparação. Os músicos têm uma base comum, um tema sobre o qual improvisam, e conhecem todos muito bem.

Esses standards são – literalmente – padrões, referências que permitem aos instrumentistas improvisarem sem perder o contato entre si. Além disso, eles têm um combinado prévio sobre como vão conduzir aquela música – o arranjo –, que também coloca todos em harmonia para que soem como um conjunto.

E é só então que o jazzista sente-se livre para improvisar: com base em seu domínio do instrumento e do ritmo, no seu conhecimento das escalas, na sua interação com os colegas de banda, põe-se a executar uma música que vai compondo na hora, que não foi escrita previamente. Daí seu caráter improvisado: é algo criado naquele momento, individualmente, que nunca existiu antes e nunca mais será da mesma forma.

Tal espontaneidade cobra seu preço, e quem se arrisca a improvisar deve estar aberto aos erros. Esses não são obstáculos, no entanto, mas desvios que levam a novos caminhos a serem trilhados – mantendo em mente de onde se saiu e para onde se quer ir com o grupo.

Precisamos aprender com o jazz. É necessário construir bases sólidas, praticá-las à exaustão, antecipar rumos de ação conjunta, estabelecer parâmetros comuns. Claro que não existe preparação ou ensaio que previna a ocorrência do imprevisto, mas são eles que nos tornam aptos a achar soluções criativas, transformando – de improviso – o erro em uma janela para o novo.

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Conseguir improvisar é uma das habilidades mais necessárias em nosso dia a dia, já que o mundo real exige de nós flexibilidade – a rigidez, a necessidade de normatizar cada passo e seguir apenas o escrito e acordado torna a vida impossível.

Acho que essa lição é um dos maiores motivos – ainda que não seja o único – pelos quais gosto tanto de jazz. Afinal, como disse o musicólogo Paul Franklin Berliner, “jazz é uma forma de se colocar diante da vida”.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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