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Aqui, ó!, banca

Os gregos ganharam um presente de troiano: o boom do dinheiro fácil e o sonho de seu país deixar de ser periférico. Aqueles a quem os deuses querem destruir primeiro enlouquecem com delírios de grandeza

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Numa foto tirada dias atrás durante as manifestações de rua na cidade de Tessalonica, um punho cerrado vaza a letra "o" (ou ómicron?) de uma cartaz contra o "poder" e a favor da "sociedade". Há um grito de "basta" contido naquele punho: um basta transideológico às decisões sobre a economia e a vida na sociedade grega tomadas sigilosamente nos gabinetes das instituições financeiras, acatadas docilmente pelo governo e impostas sem anestesia à população. O receituário é o mesmo de sempre: cortes profundos de salários e gastos públicos, redução dos direitos trabalhistas, aumento de tarifas, abandono de obras de infraestrutura, privatizações em cadeia e a preço de banana. Condições irrealistas, estúpidas e contraproducentes, destinadas, acima de tudo, a ajudar os bancos credores europeus (até o New York Times acha isso) e punir as vítimas do grande engodo neoliberal cujos estragos não se esgotaram na crise global de 2008. A palavra-chave é "koinonia" (comunhão), muito frequente na Bíblia para descrever as relações comunitárias entre os primeiros cristãos; no contexto da foto, sinônimo de comunidade, de sociedade civil. "Sim à sociedade, não ao poder" virou a principal divisa dos "aganaktismenoi", os indignados gregos que há meses fazem passeatas contra a força decisória e destrutiva da banca internacional e a complacência do governo Papandreu. Difícil acreditar que entre os indignados quase só haja servidores mais preocupados com a estabilidade no emprego e o fim de altos salários no serviço público do que num futuro melhor para o país. De resto, um futuro de escravo, para usar a mesma franqueza de um recente editorial do Financial Times. Os aganaktismenoi já se rebelaram contra o aumento de 40% nas tarifas de transporte urbano e pedágios, promovendo um beiço geral em trens, ônibus, metrôs e estradas, sem que as forças de repressão ousassem reprimi-los. O que mais farão quando Papandreu der mais uma prova de que os inventores da democracia afinal descobriram e aperfeiçoaram a debitocracia? Pois é disso que se trata: pacotes de socorro sob a forma de empréstimos que geram novos débitos, ampliando o buraco a ser tapado com o sacrifício unilateral da população. As asas de Ícaro inspiravam mais confiança. A ciranda foi deslanchada pela dissipadora ditadura dos coronéis (1967-1974), que ao facilitar a fuga de capitais dos nababos gregos provocou enormes déficits orçamentários, providencialmente maquiados pela contabilidade marota de banqueiros de Wall Street. Os credores alemães e franceses encheram a burra, os gregos empobreceram mais ainda ou emigraram. Até que, em passado recente, lhes deram um autêntico "presente de troiano": o boom do dinheiro fácil e, de cambulhada, o sonho de que podiam deixar de ser um país periférico, gastar a rodo em euros, quimera também vendida a portugueses e irlandeses com as consequências conhecidas. Aqueles a quem os deuses querem destruir primeiro enlouquecem com delírios de grandeza. Não custa lembrar que o único deus bom da riqueza, Pluto, foi punido por Zeus, o FMI do Olimpo, por teimar em entregar seus bens só às pessoas honestas. Em 2009, Papandreu prometeu à União Europeia que a Grécia honraria sua impagável dívida de ? 291 bilhões, mas avisou: "Não fomos eleitos para destruir o Estado social. Os assalariados não vão pagar por essa situação: não vamos apelar para congelamento ou cortes de salário". Palavra de socialista pós-moderno. O premiê grego já foi à Canossa. Em breve apertará as cravelhas, com os eufemismos de praxe. No meio da semana, o presidente do Federal Reserve, o banco central americano, Ben Bernanke, tentou acalmar o mercado com a informação de que os reguladores do sistema bancário dos EUA monitoram de perto a evolução da situação na Grécia. Embora tentado a dizer "isso é um perigo", pergunto: "Por que não fizeram isso antes"? Se uma vez mais não der certo, só nos restará um consolo: torcer pela sobrevivência da tinhosa Islândia. O que vale dizer, pelo êxito do gnarrismo.A política praticada por quem detesta ou se opõe à política tal qual a conhecemos - eis o que vem a ser o gnarrismo. Deriva anarquista, meio Bakunin, meio Gandhi, ganhou esse nome por ter sido gestada e testada com êxito por Jón Gnarr, comediante de TV, fundador de um partido orgulhosamente punk, o Best Party, assim chamado por ser mesmo, segundo seu criador, o melhor ("the best") do país, do contrário o teria batizado "The Worst" (o pior). Injuriado com a colossal fraude financeira que quase levou a Islândia ao fundo do poço em 2008, Gnarr entrou de molecagem nas últimas eleições legislativas, vergastando os políticos e os banqueiros e concitando o eleitorado a dizer não às propostas do FMI e da banca. Seu slogan era um trocadilho com as palavras "protestar" e "vomitar"; sua plataforma, um cardápio de providências anarcossurrealistas dignas do Groucho Marx de O Diabo a Quatro (Duck Soup). Elegeu-se prefeito de Reykjavik, capital do país, com 34,5% dos votos, e ainda fez maioria na Câmara.No último dia 17, os islandeses comemoraram o bicentenário do mais venerado Jón da história do país, Jón Sigurosson, líder do movimento de independência da ilha, sob domínio dinamarquês até 1874. Gnarr fez uma aparição triunfal nas festividades, ao lado de seus correligionários, vários deles politizados em bandas de rock. Há um ano no poder, já aumentou os impostos, é verdade, mas continua rechaçando as concessões engolidas pelas outras periclitantes economias europeias. E nem assim a Islândia afundou. Não só não afundou como já respondeu ao assédio estrangeiro com duas assombrosas erupções vulcânicas.

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