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Cerrando a cortina

Ana Botafogo encena último grande espetáculo de sua carreira mirando num futuro mais livre

Por Roberta Pennafort
Atualização:

RIO - Procurando bem, Ana Botafogo tem umas (poucas) cicatrizes. No rosto, as marcas do tempo; nas pernas e nos pés, um prenúncio de esgotamento. Mas ainda é a bailarina da caixinha de música, sem verruga, nem frieira, nem falta de maneira. Quando surge de mangas bufantes e laçarote sobre a trança como a Tatiana de Onegin, em cartaz no Municipal do Rio, o que o público vê é uma adolescente do interior da Rússia do século 19, romântica e cândida, que, ao som de Tchaikovski, se transforma numa mulher madura e ferida pelo desamor. O programa, que lhe faz um tributo em texto e fotos, anuncia que o balé é o último do repertório clássico com a sua participação.

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Aos 55 anos não declarados, 36 como profissional dos palcos, ela está a um passo da aposentadoria do teatro, do qual é funcionária desde 1981 e um símbolo maior. Não é a primeira no Brasil a chegar a essa idade em cena e em forma - é a mais famosa. Ana não aceita mais as amarras que a carreira lhe impôs, quer ser livre para viver uma vida que nunca teve. As jovens heroínas que fizeram dela a primeira bailarina do Brasil, papéis-título de balés de múltiplos atos, já não são atraentes. Prefere, a partir de agora, dançar coreografias criadas especialmente para ela, de menor duração.

Pensa em dirigir montagens, passar para as novatas sutilezas das protagonistas que já interpretou dezenas de vezes (o currículo tem mais de cem títulos): Coppélia, Giselle, os cisnes branco e negro. E poder viajar com o namorado sem ter data para voltar, não precisar se poupar tanto fisicamente, cometer loucuras: cortar o cabelo (!), esquiar, andar por aí sem se preocupar se o piso é regular ou não, usar salto alto sem receios.

 “Mas não vou pendurar as sapatilhas”, esclarece. “Posso até fazer um ‘pas-de-deuxzinho’ de vez em quando. Só não quero mais ser escrava da profissão. Considero Onegin quase a minha despedida do Municipal. Sou uma máquina que já foi muito usada. O desgaste nesse balé é o mesmo de uma menina de 20 anos, só que num corpo muito mais cansado. Melhor parar por aqui do que continuar e daqui a pouco apontarem: ‘Coitada, parece um saco de batata, devia ter se aposentado!’”

Claro que a reação à sua Tatiana tem sido o oposto disso. Ana e o partner Thiago Soares fizeram três récitas da temporada de oito, que se encerra hoje. Na quinta-feira, o anúncio de seu nome antes do abrir de cortinas já mereceu aplausos enternecidos. A cada solo, mais. Ao fim, muito mais. As entradas para os seus dias - outras três primeiras bailarinas, Cláudia Motta, Marcia Jaqueline e Bettina Dalcanale se revezaram - venderam rápido.

O clima era de “veja antes que acabe”. Nos bastidores, era de aproveitar a presença de Ana. Uma hora e meia antes do início do balé, ela ainda ensaia, sob os olhos atentos do corpo de baile. Um dos integrantes lhe pede uma foto, ela atende. Não há hierarquia, Ana treina como os outras. Mas há a aura inegável de prima ballerina.

Mesmo quem divide o posto é reverente. “A gente fica sem referência”, dizia Cláudia. “De todas as Giselles do mundo, é a minha preferida.” A companhia de balé está triste. “A cada dia, sentimos diminuir nosso tempo com a Ana. Se pudesse ficar aqui passando o seu legado, seria a glória para nós.” Ela “pode fazer o que quiser no Teatro Municipal”, oferece a diretora, Carla Camurati. “Sua relação conosco é tão estreita e especial que sobram possibilidades para se explorar.”

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Os bailarinos já estavam amuados quando foram surpreendidos por uma perda mais definitiva, segunda-feira: a do norte-americano Richard Cragun, que dirigia esse Onegin. “A gente estava contentíssima de tê-lo aqui. Ricky dizia que a Tatiana era perfeita para mim”, Ana lamenta. A montagem está sendo dedicada a Cragun, em texto lido por ela depois do terceiro sinal. Ele foi um dos grandes bailarinos do século 20, dos mais importantes com quem já contracenou (além de Julio Bocca, Fernando Bujones e de brasileiros). 

O Onegin atual é mais de 20 anos mais jovem que Ana. Thiago Soares, primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres, veio da cidade da Olimpíada convidado para esta despedida. “Ela é um exemplo de trajetória. Não sei se o público se dá conta de sua coragem: uma artista lírica que vai até o popular e traz mais público para o teatro. Eu me pego me emocionando sozinho, vêm mil flashbacks. Ana sempre foi a mesma pessoa. Ser gente como a gente é uma marca registrada dela.”

Outra marca é a sabedoria: de ter feito as escolhas certas, não ter sobrecarregado o corpo além do suportável. Dalal Achcar, responsável pelo corpo de baile do Municipal quando foi admitida a menina Ana Maria, moradora da Urca, iniciada numa escolinha de Copacabana e treinada no Teatro Guaíra, de Curitiba, sempre enxergou essa e outras qualidades.

 “O que Ana tem não se ensina. Ela fez um trabalho sistemático, teve disciplina esses anos todos”, exalta. “A pessoa tem que saber seus limites. Você ainda não vê deficiência nela. Existe um momento em que é preciso se dar conta de que não dá para continuar até que sintam pena. Existem bailarinas que chegam a essa idade fazendo esse repertório, mas é exceção. É hora de escolher o próprio caminho.”

Para este ano, já está definido. Depois do “violento” Onegin - em que Tatiana é jogada no chão, puxada, faz sequências de altíssimo grau de dificuldade -, virão passos menos desgastantes. “Mas não pensem que vai ser balé alternativo. Não vou dançar descalça.” Tem apresentações marcadas até o fim do ano pelo Brasil, alguns solos, criações de coreógrafos contemporâneos com as quais já vinha excursionando e palestras.

Ana Botafogo está “feliz da vida, bem resolvida” e segura. Só que, no fundo, teme sentir saudades da rotina do Municipal. Medo do futuro: futucando bem, todo mundo tem. 

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