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COLUNA-Eleição contamina debate sobre Cracolândia

Por (AS O
Atualização:

A ação da PM na Cracolândia, a região do centro da capital paulista tomada por usuários e traficantes de crack, e a reação que a ela se seguiu são os primeiros tiros da guerra eleitoral que se inicia pela disputa da Prefeitura de São Paulo, declarada como um dos principais objetivos do PT para 2012. Há também, é claro, um debate sobre como enfrentar o problema das drogas, repressão ou redução de danos, criminalização ou liberação -essa talvez seja uma das questões de cunho sócio-cultural que apresentam maior divisão ideológica na atualidade brasileira. Mas esse é apenas o pano de fundo de uma contenda que, em sua essência, é político-eleitoral. As evidências são várias. A primeira delas é o fato de que a Cracolândia não é uma ferida nova no tecido da cidade. Está ali, em estado de putrefação, há quase 20 anos. Não é a primeira vez que uma intervenção policial tenta colocar fim à aglomeração de viciados que aterroriza moradores e provocou a degradação urbana da região. Algo semelhante foi tentado em 1999, ainda que sem a mesma intensidade e truculência (bombas de efeito moral e balas de borracha tiveram de ser proibidas pelo próprio governador paulista, Geraldo Alckmin). À época, a polícia intensificou as blitze na região, prendendo quase 200 pessoas por mês. O trabalho, porém, não prosseguiu nem foi complementado com ações de saúde e de assistência social. Nos últimos dez anos, a atuação da polícia restringiu-se a manter o problema contido geograficamente. Então, por que só agora se decidiu utilizar a PM de modo ainda mais intenso? Esta pergunta não será respondida com clareza pelos que determinaram o início da operação. De acordo com O Estado de S. Paulo, foi o segundo escalão da PM que decidiu agir de imediato, mesmo antes da abertura de um novo centro de atendimento aos usuários, prevista para fevereiro. Mas a ação vinha sendo planejada há alguns meses pelas cúpulas do governo do Estado e da prefeitura. O próprio Alckmin veio a público negar que tenha havido precipitação. O que houve, de fato, foi desarticulação com a prefeitura, que não foi informada do início da operação, segundo já foi admitido por membros das duas administrações. Uma resposta àquela pergunta seria a suposta iminência de lançamento de um programa federal, capitaneado pelo Ministério da Saúde, para a região. Ao que parece, porém, a própria divulgação desse plano de intenções parece ser mais uma evidência de que a questão está contaminada pela disputa eleitoral que se aproxima. Ainda na campanha presidencial, a então candidata Dilma Rousseff incluiu o combate ao crack entre suas promessas de governo. Quase um ano depois de ter assumido a Presidência, Dilma anunciou, em 7 de dezembro, investimentos de 4 bilhões de reais para enfrentar o desafio. Uma das reações à intervenção policial foi a divulgação pela imprensa do cronograma de ação previsto no plano do governo federal. Por ele, em fevereiro seriam lançados consultórios de rua e só depois seriam instaladas bases móveis da Polícia Militar. Ocorre que, pela Constituição, a segurança pública é atribuição dos governos Estaduais. O governo de São Paulo, por intermédio da secretária da Justiça, Eloisa de Sousa Arruda, no entanto, disse não ter conhecimento do projeto federal. Como um cronograma de ação do governo federal, prevendo o uso da PM, poderia ser elaborado e colocado em prática sem a devida articulação com o Estado? Parece certo que as coisas estavam ainda no campo das intenções. PROGRAMAS DE ATENDIMENTO Outra evidência de que o debate sobre a intervenção está polarizado segundo linhas eleitorais pode ser encontrada na reação estridente contra a atuação da polícia. É infundada a principal crítica que se tem feito -a de que a intervenção seria higienista e policialesca, pois não seria acompanhada por programas de assistência aos viciados. Há anos a região é servida por ONGs e agentes públicos que buscam atrair os usuários de crack para centros de tratamento e reabilitação. Os resultados, porém, tem sido insuficientes, principalmente pela resistência do público-alvo, como prova a permanência do problema. É verdade que as vagas oferecidas para tratamento de viciados no SUS municipal seriam insuficientes para atender toda a demanda caso houvesse maior efetividade na abordagem e convencimento dos usuários. Mas os programas existem. Tanto que um dos efeitos da ação da PM na Cracolândia foi o aumento da internação. Segundo levantamento da Folha de S.Paulo, o crescimento foi de quase 70 por cento. Em seis das sete clínicas conveniadas à prefeitura e na única unidade de internação municipal, apenas 27 das 329 vagas existentes estavam disponíveis. O mesmo fenômeno também foi constatado na "Cristolândia". O misto de centro comunitário e igreja que funciona na região há quase dois anos fazia 40 internações por mês e, em dez dias de ação policial, já passou do dobro desse número, segundo declarou o pastor Humberto Machado, coordenador da missão. Não há como negar, porém, que, além do aspecto eleitoral que tem contaminado a questão e aumentado a estridência das reações, há também um debate ideológico sobre como atuar na questão das drogas. A linha que divide os lados é traçada pela oposição entre tolerância e repressão. MUDANÇAS DE OPINIÃO É interessante observar que essa divisão apenas aparentemente se confunde com os campos político-partidários. Em princípio, o PSDB de Geraldo Alckmin e o PSD do prefeito Gilberto Kassab seriam propositores da repressão, enquanto o PT estaria mais alinhado com as propostas de redução de danos e, eventualmente, de descriminalização das drogas. Quando se observa mais de perto percebe-se que não é bem assim. Quando esteve na oposição, o ex-presidente Lula chegou a publicar um manifesto à Organização das Nações Unidas pelo fim da política de criminalização das drogas. No governo, porém, o máximo que permitiu foi que seu Ministério da Saúde estabelecesse programas de redução de danos, muito criticados e talvez por isso também muito limitados. Lula manteve na Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas quase toda a equipe para ali levada pelo tucano Fernando Henrique Cardoso. Este, por sua vez, já fora da Presidência, passou a ser uma das principais vozes brasileiras na defesa da descriminalização da maconha. A abordagem de Dilma Rousseff não se diferencia da de seu antecessor e padrinho. Basta lembrar que Pedro Abramovay foi demitido do posto de secretário nacional de Políticas sobre Drogas por ter defendido publicamente o fim da pena de prisão para pequenos traficantes. O que talvez explique a diferença entre discurso e prática é o fato de que, se por um lado há o reconhecimento de que a política repressiva, tal como tem sido implementada, não tem obtido resultados duradouros, por outro, a maioria da população do país é claramente contrária à descriminalização. Em dezembro passado, a mesma pesquisa CNT/Sensus que apontou que 70 por cento aprovam a presidente Dilma também indicou que 78,6 por cento não querem a legalização do uso das drogas.

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