(Des)humanidade

Análise publicada originalmente no Estadão NoiteEm 9 de janeiro deste mesmo 2015 usei este espaço para tratar da banalidade do horror. Não só o perpetrado por fundamentalistas, mas também aquelas atrocidades formais e burocráticas promovidas pelos Estados ocidentais, em nome da paz e segurança mundiais. Dez meses depois, poderia republicar o artigo, mudando apenas algumas linhas. Cairia como uma luva para interpretar os ataques do último final de semana em Paris.

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Por Fabrício H. Chagas Bastos
Atualização:

De fato, a qualidade do debate (apesar da superexposição) na mídia brasileira e internacional é demasiada fraca. Precisamos parar com o 'sofrimento seletivo' disseminado pelos centros ocidentais, como se vivêssemos em uma ilha sob o risco de ataque iminente e/ou temendo sermos esquecidos pelo mundo. A morbidez em contar, divulgar e transformar em espetáculo as mortes esconde racismo e segregação. Um breve apanhado para ilustrar como se enxerga apenas o que se quer ver: janeiro de 2015, Nigéria: 2 mil civis mortos em Baga; guerra civil síria: mais de 250 mil mortos; abril de 2015, Quênia: 147 mortos e 79 feridos em ataque à Garissa University College. 14 de novembro, Líbano: ataques à bomba, matando pelo menos 43 pessoas e ferindo mais de 200; Burundi: centenas de mortos, numa escalada de violência que perdura desde abril de 2003. Brasil, todo ano: média de 54 mil mortos por armas de fogo. Permitam-me evitar a reprodução de mais estatística macabras de X vítimas ou Y mortos, para abordar o tema 'terror no mundo', de modo amplo, sob três pontos de vista: i) origens e impactos sociais, ii) audiência dos ataques e iii) gestão da governança global. O governo francês sabe bastante bem, desde pelo menos outubro-novembro de 2005, quando carros e prédios públicos foram incendiados nas periferias de Paris e de outras cidades, que o acúmulo de ódio dentro de suas fronteiras não é fruto somente da presença de suas tropas no Oriente Médio ou no Norte da África. A Europa, ao longo das últimas décadas, é um celeiro de separação social, criando cidadãos de segunda classe (não europeus), e alimentando militarmente os conflitos que originam ondas de refúgio e potenciais focos de fundamentalismo. O crescimento do ódio e da frustração no seio das populações marginalizadas, velada ou explicitamente, alimenta uma crescente divisão entre 'nós' e 'eles', em um discurso bastante conivente sobre 'nós' estarmos sendo atacados porque 'eles' não podem lidar com as 'nossas' liberdades e maneiras de enxergar/organizar o mundo. As especulações sobre quem perpetrou os atentados, se Isis, Al-Qaeda ou qualquer outro grupo, são irrelevantes. Os Estados ocidentais, desde pelo menos o começo deste século, têm se despido de padrões morais para investir em liberdades irrestritas de caça e destruição. Acabaram, pois, por banalizar o horror que juram combater. O mal para evitar o mal. Não é surpreendente que comecem a aparecer notícias sobre 'como os EUA auxiliaram a criação e armaram o Isis' - assim como fizeram com a Al-Qaeda e o Taleban. É quase cômico, se não fosse trágico. Numa tentativa de responder rápido e mostrar imperial controle da situação, a polícia francesa alegou ter encontrado um passaporte sírio junto ao corpo de um dos terroristas mortos. Shobhan Saxena, correspondente do The Hindu na América do Sul, coloca uma questão interessante: 'por que todos os terroristas sempre se movem com seus passaportes?'. E lembra: 'no ataque ao Charlie Hebdo, um dos atiradores deixou sua habilitação no carro'. Afinal, identificação é absolutamente necessária quando se vai promover o terror... Repito: despejar doses cavalares de preconceito e culpa em populações que nada têm com o acontecido é repetir em escala massiva o sentimento de culpa que foi implantado no centro da identidade alemã depois da duas guerras mundiais. Tão desumano quanto matar inocentes. O caminho natural, ao que indicam vários colegas, é que políticas de imigração e refúgio ao redor do globo tornem-se mais restritivas, fechando um círculo perverso e vicioso de incentivo e fomento da violência, ausência de negociações políticas reais e coordenação sistêmica. O problema não são os refugiados, mas as regiões de onde e os motivos pelos quais fogem (estúpido!). Além disso, os refugiados são exatamente o efeito colateral da jihad travada por Isis, Al-Qaeda e qualquer outro grupo: ao saírem de suas terras natais, mostram que o abrigo e a segurança que califados e afins pretendem demonstrar não existem, enfraquecendo as narrativas criadas. Em aguda análise sobre para qual audiência são dirigidos tais ataques, Mark Juergensmeyer, professor de Sociologia da Universidade da Califórnia (Santa Bárbara), argumenta que os eventos parecem ter sido realizados para levantar a moral dos próprios militantes do Isis, desmoralizados pelas levas de refugiados já mencionadas, além de massivas deserções em suas fileiras. A estratégia flerta com o preconceito embutido numa potencial resposta islamofóbica, que alienaria muçulmanos ao redor do mundo, reforçando a noção de que o Islã deve ser defendido a todo custo. É autoevidente: como planos político-diplomáticos de disseminação da democracia de uma ordem liberal centrada em valores ocidentais, o Iraque deu errado, a Líbia pós-Kadafi dá errado, a Síria dá errado (há pelos menos cinco anos), partes da África dão errado. Quantos ataques mais precisamos colecionar para que o admirável mundo novo possa entender que o ambiente de transição que vivemos demanda uma solução coletiva? O argumento básico de perda/esgarçamento/manutenção de soberania e da necessidade inconteste de uma potência hegemônica a organizar o sistema internacional beira o paroxismo. É inútil pensar num concerto político tal qual no século 17, assim como imaginar que uma liderança unipolar, onipresente e arrogante possa policiar, domesticar, democratizar e organizar o mundo a seu bel prazer. Cinco países sentam-se no Conselho de Segurança como membros permanentes, dois têm poder, chance e capacidade de colocar a mão na mesa e combinar posições, reunindo outros atores para darem um basta à carnificina que grassa o mundo de tempos em tempos (agora, em espaços cada vez mais curtos). O sangue (im)puro que escorre pelos caminhos de Paris parece ser mais importante que as bombas e balas em outras partes do mundo. Parece ser mais importante que a lama que soterrou a vida em Mariana. Atingimos um ponto na história que pode ter algum paralelo com o terror burocrático e espetacular dos tempos do fascismo. A profunda desvantagem é não termos as mentes brilhantes daquela época para indicarem possíveis saídas ao processo de desumanização que vivemos.* Fabrício H. Chagas Bastos é professor de Relações Internacionais da School of Politics and International Relations da Australian National University e Endeavour Research Fellow do Australian National Centre for Latin American Studies da mesma instituição. Doutor pela Universidade de São Paulo. E-mail: fabricio.chagasbastos@anu.edu.au

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