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Dos males, os maiores

Os grandes vícios da política acossam instituições, que devem resistir para garantir legitimidade

Por Juliana Sayuri
Atualização:

Entre as mazelas endêmicas presentes nos tristes trópicos, poucas corroem os pilares democráticos tão vorazmente como as “tentações” corruptoras da política. Tentações graúdas, como o fascínio pelo poder e pela fortuna fácil. Mas também miúdas, como a malandragem cotidiana e o tal jeitinho brasileiro, que atropelam, sorrateira, ruidosa ou descaradamente, as chancelas das instituições. “Para que sejam consideradas legítimas pela sociedade, é necessário que as instituições se concentrem sempre nos seus valores próprios e resistam corajosamente a esses males: a sedução do dinheiro, o poder burocrático e a endogamia.” A análise é de Alfredo Bosi, que ocupa a cadeira nº 12 na Academia Brasileira de Letras desde 2003 e a de professor emérito de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo desde 2009. Nesta entrevista ao Aliás, Bosi comenta tais enfermidades crônicas que fragilizam as instituições brasileiras, do tablado dos tribunais aos quadros da universidade, passando pelos gabinetes de Brasília. Diante desses “deslizes”, a sociedade brasileira estaria resignada? “Essa atitude permissiva é uma das consequências mais deploráveis da imagem que o homem do povo tem de nossa classe política”, observa o crítico literário. Para Bosi, a lei deve valer - e se aperfeiçoar ao longo do tempo no combate a toda sorte de fraude. “A Constituição de 1988 é um diploma avançado em termos de democracia e justiça social”, diz o autor de Dialética da Colonização (1996) e Ideologia e Contraideologia (2010), entre outros. “Uma Carta Magna deve durar o bastante para criar raízes no cotidiano e na memória de um povo. Trata-se agora de cumpri-la e levar adiante seus dispositivos que elevam nossa democracia formal representativa ao patamar necessário de uma democracia participativa”, pondera. A seguir, os principais trechos da entrevista.

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O desprestígio dos poderes“Por um lado exaltadas, por outro desmoralizadas, as instituições muitas vezes são alvo de motivações puramente partidárias e jornalísticas, motivações fáceis de serem detectadas. Mas se a ação dos tribunais fosse, em princípio, reconhecida como um exercício de verdadeira isenção, a Justiça não precisaria ser nem teatralmente endeusada nem tristemente aviltada. Considerada longe desses extremos, a Justiça deve ser simples, mas, rigorosamente, um serviço público respeitado. O que o senso comum do público estranha é a desproporção das penas em relação às culpas: assassinos atrozes soltos após curtos períodos de encarceramento, ao lado de condenados a longos anos de prisão por delitos incruentos. Igualmente a morosidade do sistema judiciário como um todo vem concorrendo para o desprestígio de um poder que, no entanto, deveria receber da opinião pública as mais profundas mostras de respeito. Portanto, há medidas de reforma a serem tomadas em benefício da instituição e da sociedade que tanto dela espera. Nessa linha, para que sejam consideradas legítimas, é necessário que as instituições se concentrem sempre nos seus valores próprios e resistam corajosamente a três dos seus males endêmicos: a sedução do dinheiro, o poder burocrático e a endogamia. São três enfermidades difíceis de curar. Primeiro, resistir à tentação do dinheiro fácil - a ‘argentite’, de que falava o grande físico Oscar Sala, referindo-se a certas tentações da universidade - implica contrariar a lógica perversa do sistema capitalista abrangente e de sua ideologia própria, o fetichismo do ganho cada vez maior. Segundo, resistir à máquina burocrática é contrariar a tendência das instituições a centrar o poder nas mãos de uma hierarquia que sacraliza as suas atribuições e rejeita qualquer projeto de democratização das decisões. Por fim, resistir à endogamia é arejar os quadros das instituições com a entrada periódica de participantes externos, que podem dialetizar as normas internas, impedindo-as de se converterem em dogmas.

Uma alegoria das mazelas“Um dos maiores mestres da universidade brasileira (ainda vivo, felizmente, e por isso não revelo sua identidade) costumava dizer com límpida franqueza que as escolhas para assistentes do ensino superior eram mais acertadas outrora, quando feitas pelos catedráticos, do que no regime atual dos concursos. Em princípio, a afirmação soa inaceitável do ponto de vista da absoluta e abstrata isenção, que deve presidir à seleção de candidatos ao serviço público. Porém, ela traz à tona uma inquietante verdade de fato, senão de direito. Haverá efetiva imparcialidade na escolha mediante um concurso? O nepotismo, teoricamente evitado pelo concurso, acaso não se reconstitui na hora da formação das bancas julgadoras, verdadeiras igrejinhas - ou panelinhas - que realizam sinuosas ações entre amigos? Mas não é hora de desanimar. A quem quiser conhecer o que era o sistema de votação no Brasil Império, recomendo o conto A Sereníssima República, de Machado de Assis. Uma obra-prima de sátira traduzida no mais leve e sutil humorismo. A moral da história não é, porém, absolutamente pessimista. A narrativa é alegórica. Fala-se de uma república de aranhas que elege os governantes mediante um sorteio de bolas onde estão escritos os nomes dos candidatos. Tudo parecia bem concertado, mas, no momento da apuração, surgiam dúvidas e suspeitas: ora o nome de um candidato aparecia repetido em duas ou três bolas; ora faltava o registro de algum pleiteante; ora, enfim, constatava-se erro na grafia de um provável vitorioso na urna, ou melhor, no saco. Reformas de todo tipo foram propostas, e algumas foram até implementadas. Mas o saco foi refeito um sem-número de vezes, por dez damas que passavam o tempo em tecê-lo, sempre aperfeiçoando-o. As damas são comparadas a Penélope, pois, assim como a esposa de Ulisses, deviam ser castas, pacientes e talentosas. E conclui o narrador do conto: ‘Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino. Não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo’. A alegoria vale para as nossas mazelas, que, de resto, não são apenas nossas. A lei precisa existir, vigorar e aperfeiçoar-se no combate a toda sorte de fraude. E o legislador deve cultivar a paciência esperançosa de Penélope. Um dia, a sabedoria solerte de Ulisses voltará a reinar em Ítaca.

Hipóteses imaginárias“Revisitando principais intérpretes do Brasil - Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, entre outros -, que podemos dizer sobre a sociedade brasileira contemporânea?, você questiona. Começo propondo uma distinção. Primeiro, Caio Prado Júnior se atém preferencialmente às raízes econômicas da história social brasileira. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda exploram tendências psicológicas e culturais que teriam marcado nosso estilo de sentir, pensar e agir. Não sei o que diriam da situação política atual com sua rede de suspeitas e acusações no plano da ética pública. É provável que Caio Prado falasse da corrupção como um fenômeno inerente a um regime em que o governo teria os mesmos vícios da burguesia afluente em qualquer Estado capitalista - e não só nos chamados Estados periféricos. Talvez Gilberto Freyre não mostrasse a mesma repulsa e indignação, pois conhecia a fundo a corrupção eleitoral e administrativa dos trustes ianques dos anos 20 do século passado. Sérgio Buarque talvez aplicasse sua visão das elites brasileiras, privatistas e individualistas, mostrando como se comportam quando confundem o lugar público com sua casa e seu quintal. Mas tudo são hipóteses imaginárias... Tampouco tenho condições de dizer o que os mesmos pensadores do Brasil diriam sobre a emergência da classe C, a partir do segundo mandato do ex-presidente Lula. Mas sendo todos democráticos, cada um a sua maneira veria com bons olhos uma política social justa e progressista, mas necessariamente imperfeita, como são todas as coisas deste mundo.

Entre a cordialidade e a conivência“Essa atitude permissiva, pela qual tudo se aceita porque todos fazem o mesmo, é uma das consequências mais deploráveis da imagem que o homem do povo tem de nossa classe política. Infelizmente, evidências de práticas corruptas multiplicam-se a olhos vistos por todo o País. Sei de um prefeito da Grande São Paulo que comprou literalmente todos os vereadores oferecendo um apartamento novinho em folha a cada um deles. O caso não chegou ao Supremo, como milhares de outros. O conluio dos prefeitos com as empreiteiras é notório e está envenenando as cidades do interior, atulhando-as de condomínios e prédios comerciais sem o menor respeito ao ambiente e à qualidade de vida dos moradores. O caos no trânsito das rodovias periféricas é efeito imediato dessa política que se honra com o nome elástico de ‘crescimento’. No plano nacional, há lobbies sinistros forçando o governo a construir usinas nucleares caríssimas, perigosas e desnecessárias. Nunca fui entusiasta da tese da cordialidade brasileira, embora essa tese possa parecer adequada na compreensão de algumas situações interpessoais. De todo modo, supondo que seja verdadeira, não creio que a permissividade em face da corrupção se deva atribuir a uma suposta afabilidade do povo brasileiro. Uma cordialidade assim tão flácida, e que engoliria todos os sapos, acabaria sinônimo de simples conivência.”

PONTO A PONTO COM ALFREDO BOSI | MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS E PROFESSOR EMÉRITO DE LITERATURA BRASILEIRA NA USP

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