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Em águas escuras, no meio da selva

Excursão reúne autores e leitores para subir o Rio Negro, a partir de Manaus, com escalas na floresta, numa experiência capaz de aguçar a criatividade - e quebrar a solidão do ato de escrever

Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:

Algumas das pessoas que embarcaram no cruzeiro literário Navegar É Preciso, realizado pela Livraria da Vila entre 30 de abril e 4 de maio, já tinham viajado para o Brasil - talvez não para a Amazônia, andado de bicicleta pela região da Provence, na França, ou estado na Birmânia. Nunca, no entanto, tinham tido uma experiência como esta: entrar num barco em Manaus, que subiria o Rio Negro enquanto elas conversavam sobre literatura com escritores de carne e osso que, sem redoma, sentariam ao lado delas no café, almoço e jantar. Tampouco os quatro escritores convidados - os brasileiros Ignácio de Loyola Brandão, Edney Silvestre e Nilton Bonder e o português de origem angolana Valter Hugo Mãe - tinham vivido algo parecido em suas peregrinações literárias. E cada um saiu com uma história para contar, e uma forma diferente de contar o que viu. Uns, por exemplo, vão dizer que passearam pela floresta alagada por um rio prestes a bater o recorde histórico de cheia. Valter Hugo Mãe, a la Manoel de Barros, vai contar que navegou "pelo lugar do voo dos pássaros".

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As anotações de Hugo Mãe, aliás, chamaram a atenção desde o primeiro passeio pela floresta - os debates eram realizados no barco, mas o grupo saía duas vezes ao dia para conhecer a região. "Eu ainda não sabia onde estava, e Valter tomava notas", disse Edney. "Nunca vi ninguém anotar como ele; fiquei surpreso", comentou Ignácio. E o que ele escreveu no caderninho? Ao ver um cipó, anotou: "Penso em como seria bom se quando nos feríssemos o sangue regressasse correndo ao coração, protegendo-se, preferindo permanecer. É um pouco frustrante perceber que o sangue, definindo tanto a nossa história, em qualquer oportunidade, nos abandona". Aranha: "Vimos uma aranha que voava com as patas. Parecia um bicho de fio de cabelo que passava atrapalhada no ar".

Para ele, a poesia está naquilo que vemos, e porque as pessoas têm o hábito de reduzir a realidade é que se cria uma expressão menos valiosa. Tipo, cipó. "Não é uma mentira e nem é uma analogia. É só uma evidência, mas às vezes estamos tão pouco preparados para aquilo que é evidente que não conseguimos expressar. Ou quando a expressamos reduzimos a evidência, como se a realidade fosse demasiadamente fantasiosa para que não a conseguíssemos apreender de imediato." Curioso que em outro momento, quando fazia cafuné num pequeno réptil no braço do guia, perguntou o nome. "É filomedusa." E Valter brincou: "Um sapinho, pronto. Que mania de complicar".

Edney anotou pouco, fez um ou outro desenho e comentou que fora dali talvez entendesse o que tinha se passado naqueles dias, quando encontrou o "extraordinário" em seu primeiro contato com a floresta. Ignácio, que também se disse muito imerso na experiência e por isso não podia, embarcado, simbolizá-la, fez uma única anotação nas andanças: "casal que desaparece na floresta". É possível que isso vire um conto. "Fico muito fascinado com gente que some e imaginei o último casal da trilha desaparecendo pela floresta, mas só."

Mãe. Valter Hugo não disse à mãe o que viria fazer no Brasil e talvez ela não achasse graça da piada que o filho fez quando o guia pediu que um dos participantes o ajudasse pegando sua carteira no bolso. Era tarde da noite e o grupo havia saído do barco em lanchas à procura de jacarés. Quando o senhor tirou do bolso um jacaré minúsculo, mas de verdade, o escritor logo pensou: "pois é uma carteira Lacoste". Mas foi a ideia de estar perto de um "jacaré gigante de uns 4 metros", que ele não sabe ao certo se viu ou imaginou, que mais o impressionou durante toda a viagem.

Foi por causa de um problema de saúde da mãe que ele não falou da Amazônia - e quase não viajou. Veio e percebeu, ao embarcar, que teria de descontrair e deixar a angústia para lá. Deu certo.

"Agora ela vai saber que estive com um jacaré enorme, que abelhas estranhíssimas saltaram todas para a minha cara e que foi horrível. Vou contar que vimos os botos, que eles engravidam as meninas, todas essas coisas terríveis", brincou. "Hoje, sinto-me dois anos distante do homem que embarcou no aeroporto do Porto. Quando voltar, estarei robustecido para enfrentar a dificuldade que sobra para ser enfrentada."

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Dos males, o menor. Foi uma viagem extremamente segura no que diz respeito a fatores externos e a mãe de Valter Hugo não teria com o que se preocupar. O barco subiu o Rio Regro até o município de Novo Airão, a 115 km de Manaus. Da Amazônia, os participantes conheceram o jardim de entrada logo na primeira manhã da viagem. Uma trilha de 1h30 por uma floresta úmida e abafada deu a ideia da imensidão do lugar. Nenhuma onça ou bicho desconhecido para contar história - Valter bem tentou sugerir que todos contassem que tinham, sim, visto uma onça. Nenhum pássaro mais sonoro. Só verde. Todos os tons, como no maior dos quebra-cabeças.

Para dar uma cara a mais de aventura, o guia propôs que o grupo saísse da trilha e andasse um trecho da mata fechada. Desvia de um galho aqui, enrosca em outro ali e a histeria geral: o encontro com as nômades e carnívoras formigas-correição fez o viajante pular, se bater e matar umas tantas que lhes subiam pelas pernas. Dois dias depois, outro ataque inusitado. Ao encostar na margem do rio, a lancha foi invadida por um bando de macacos que, com macaquinhos nas costas, protagonizaram um dos momentos de maior descontração ao subir nos ombros e cabeça dos turistas e enroscar em seus pés.

Mergulho. Mas houve quem entrasse de cabeça e se arriscasse um pouco mais. De tão absorto na experiência, Leone Novaes de Lima, 18 anos - que havia sido surpeendido com a viagem ao vencer o concurso cultural da Rádio Eldorado e nunca tinha ouvido falar nos autores convidados -, jogou-se no rio sem saber nadar. "Fomos autorizados a pular para conhecer o rio. Vi os olhos de todo mundo brilhando, todos felizes, e pensei: quero sentir essa alegria. Perguntei para mim mesmo qual era o grande segredo desse rio em que está todo mundo pulando." A correnteza era forte e o nome do rio faz jus à sua cor. Foi resgatado pelo músico Charles, do grupo Barbatuques.

"Eles falaram do boto, do jacaré, e mesmo assim eu pulei. Acho que segui o instinto, queria fazer parte." Resultado: Leone, que já teve uma crônica vencedora em um concurso e publicada em livro - lida corajosamente por ele para todos no último dia do passeio -, quer escrever mais, e vai entrar na natação. "Tudo o que estou vendo e associando é um bom pontapé para eu sentar na minha cadeira e começar a escrever uma história." Leitor de Harry Potter e companhia, garantiu que vai ler os livros dos colegas de excursão. "Começarei por quem considero mais parecido comigo, uma criança mentalmente, pelo menos para mim, o Ignácio de Loyola Brandão. Ele foi fantástico."

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Formação. Ao contrário da maioria dos eventos literários brasileiros, o Navegar É Preciso não pretende formar leitores. Nem é necessário. Uma pesquisa informal revelou que os participantes - quase todos mulheres - leem entre 15 e 20 livros por ano. Todos já tinham lido pelo menos o livro de um autor convidado e ninguém saiu sem comprar um exemplar na livraria flutuante.

Quando o proprietário da Vila, Samuel Seibel, chegou à reunião de marketing com a ideia desse cruzeiro, achou que seria ridicularizado. Ele queria que esse fosse mais um ponto de encontro da sua rede de livrarias, num barco, para que não houvesse dispersão, e que também fosse um polo cultural. Para esta edição, além dos escritores, ele levou para a Amazônia a atriz Clarice Niskier, que na primeira noite fez a leitura dramática de trecho do Eu Matei Sherazade, da libanesa Joumanna Haddad, e na terceira encenou a peça A Alma Imoral, baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Para dar o tom, levou parte do grupo Barbatuques.

"Temos muitos eventos maravilhosos de literatura, mas o que torna este projeto diferente é que as pessoas vêm sem saber o que vão encontrar, mas predispostas a se desarmar." O projeto ainda não dá lucro, mas também não dá prejuízo.

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Transposição do personagem. Um dos passeios mais esperados, e quase frustrado, foi ao píer que costuma receber a visita dos botos cor-de-rosa. Longos minutos de espera, com a encantadora de botos Marisa agitando o pé n’água para chamar a atenção deles, e nada. A garota diz então que fica contente que o grupo entenda a situação. Ao que Valter Hugo Mãe, maroto, responde: "Entender a gente entende as horas que for, mas a gente quer ver". Enquanto isso, discreto, Maurício Maas, do Barbatuques, foi se refrescar. "Olha o boto", disse um. "Esse aí não é um boto não; é o broto", respondeu uma senhora em voz baixa. Por fim, eles apareceram. Mas quem foi enfeitiçado mesmo foi o escritor angolano.

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"Se eu fosse um documentarista, só ligava a câmera e dizia: Olha, fala durante cinco horas. E ao fim de cinco horas, fazia um editing, montava uma curta de 30 minutos e ganhava o prêmio de Cannes", contou mais tarde. Nesse momento, confessou, sentiu vontade de escrever para adolescentes. "Foi interessante também porque no romance que estou a escrever a personagem principal é uma menina e uma das coisas que acontecem, e que quero estudar através do meu livro, é o momento que elas se tornam menstruadas. Toda aquela questão do boto, das meninas e do preconceito em relação a elas. Tudo isso me pareceu que pode ser mudado para uma fantasia na Islândia, onde situo meu romance novo."

Segredo. Aconteceu na Flip no ano passado e aconteceu de novo agora. Por onde passa, Valter Hugo ganha um novo leitor e um admirador. Mesmo tímido, é espontâneo e aberto. "Eu falo, não tenho medo. As pessoas guardam coisas que consideram da sua intimidade e que eu não entendo como coisas tão íntimas. São coisas universais, todos sentimos. Isso de subir ao palco e dizer que tenho medo, que lamento não ter feito alguma coisa, que chorei ao ler um livro, não vejo como um reduto de intimidade. E tenho pena que as pessoas entendam isso como coisas que devam ser escondidas, porque aí fazemos todos um papel ficcional para corresponder a uma espécie de ser humanos durões, quando, na verdade, ninguém é tão durão assim."

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