Ivan Lessa: Nem banal nem humano

Breivic não tinha cara de assassino. Tinha cara de bunda.

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Por Ivan Lessa
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Outra das inúmeras desvantagens do enfisema é ter de ficar em casa o tempo todo. Respirando com dificuldade diante do livro aberto, da televisão e do DVD. Parando duas vezes por dia para as refeições microondáveis, que, ao cabo de umas semanas, acaba tudo com o mesmo gosto. Banal, desumano. Sobram, para fazer graça com o paladar, banais sobremesas, banais refrigerantes. O resto é tudo igual. Sempre a mesma coisa, sempre o mesmo desconforto, sempre o mesmo Fernando Pessoa deixando seu lugar na estante. Tudo que levam na TV ou se aluga em DVD acaba parecendo a mesma coisa. Banal, excessivamente humano. Os pulmões fracativos se encarregam das críticas. Outro dia vi o falado (a rigor deveria ter sido mudo, feito o L'Artiste francês) Hugo, do Martin Scorsese. Babaquice dispendiosa insuportável. Insulto a tudo que ele pretendia fazer: a tão propagada homage, conforme se dizia nos bares depois de uma chegada no velho cine Payssandu, no Rio. Homage é os tinflas. Faz outro Taxi Driver ou Goodfellas e a plateia, sensibilizada, agradecerá a homenagem. Ou então filma esse que é meu assunto de hoje. Mais cedo ou mais tarde alguém vai embarcar nesse Titanic, que, ao menos agora, parou de se centenarizar. Quem será o primeiro a faturar em cima da chacina norueguesa? Werner Herzog, que poderia e até mesmo deveria, não será. Frederic Wiseman vai ser meio difícil, já que ele anda ocupadérrimo com outras banalidades humanas e, além do mais, meteria os pés pelas mãos ou, pior, vice-versa. Ficará com algum talento desconhecido nórdico que fará o documentário e uma boa fortuna graças aos monstruosos desvios de Anders Behring Breivik, responsável por 77 mortes a bomba e tiros de seus conterrâneos lá pelos ares - banais? Humanos? - noruegueses. E ele não se arrepende e faria tudo outra vez e foi um caso, segundo o bruto, de auto-defesa. É de chorar. E ele chorou. Na eterna falta do que fazer, ontem postei-me diante do aparelho de TV e, por uma vez na vida, fiquei grudado no canal da BBC com notícias 24 horas por dia só que com som, luxo que não dou a outros eventos tristes como revolta ou cessar-fogo na Síria, dramas na Somália ou jogos de futebol do Chelsea ou do Manchester United. Participei das primeiras longuíssimas horas do início do julgamento de Breivik. O homem deu uma saudação para todos e ninguém com o braço direito, gesto típico do psicopata assassino, declarou-se e foi declarado como de posse de suas faculdades mentais, portanto em estado de sanidade e, a seguir, por algumas horas, e várias vozes, foram lidos os nomes das 77 vítimas que perderam a vida, mais umas não sei quantas que saíram feridas, com os minuciosos detalhes dos ferimentos recebidos. A uma certa altura, o assassino múltiplo chorou. Nada parecido com as séries americanas de crime que, por aqui e pelo mundo inteiro, proliferam. Fiquei olhando muito para o homem em questão. Não tinha cara de assassino. Tinha cara de bunda. Com um bom toque de amish naquela barbinha rala rodeando o traseiro facial. Minha curiosidade agora é ver se alguém entrevista o advogado que vai defender Anders e qual será sua estratégia. As séries de tribunal americana bolariam, na certa, uma firula mais interessante do que vai ser. Mais banal, mais humana. Na terça-feira, dei um descanso. Botei disco na vitrola (sim, disco; sim, vitrola) e fui conferir dois erros consagrados de dois autores também consagrados e que, com Anders, no meu entender, quebraram a cara. O citadíssimo A banalidade do mal, de Hannah Arendt, sobre Adolf Eichmann. Nada, mas nada de banal em Anders. E o segundo, uma citação de meu poeta inglês predileto, W.H. Auden, que, num poema célebre, tacou lá "Evil is unspectacular and always human". Quer dizer, "o mal nunca é espetacular e sempre muito humano." Breivic nada tem de banal, humano e dele não se pode, infelizmente, dizer que tenha sido pouco espetaculoso. Pouco banal e espetacular mesmo só o pelotão de fuzilamento, que alguma autoridade norueguesa andou sugerindo. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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