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Ivan Lessa: O poder e a negritude

Colunista comenta o poder, a negritude e a opção de Ruanda pela adoção do inglês.

Por Ivan Lessa
Atualização:

Impressionante. Batuco estas mal digitadas algumas horas antes de o presidente Barack Hussein Obama ser eleito o presidente Barack Hussein Obama. Parece feitiço, mandinga, não sei bem o quê. Devo ter sido influenciado pelo comercial de 30 minutos exibido na noite de quinta-feira nos Estados Unidos. Aqui, num gesto inaudito, não passaram. Qualquer coisa a ver com a proibição de "comerciais estrangeiros". Todos aqueles CSI não são, por natureza e feitio, comerciais. Meros reflexos filosóficos da nação irmã desta aqui que tão carinhosamente me acolheu. A mim e a muita outra gente que não presta também. Monteiro Lobato, como Balzac, na marchinha, atirou na pinta: mulher só depois dos trinta. Não é isso que eu queria dizer. Minha mente se confunde com a profusão de sentimentos diante da inédita eleição. Monteiro Lobato atirou na pinta, sim. Só que foi quando escreveu, em 1926, um livro, seu único romance, chamado O Presidente Negro. Era passado no ano de 2228. Incrível, o bruxo paulista acertou o 8 final! De resto, a obra não tinha absolutamente nada, mas ab-so-lu-ta-men-te nada, de profético. Nem a mais remota semelhança com um mínimo de situações políticas relativas às terras do Tio Sam, como a chamava o esplêndido autor de O Sítio do Picapau Amarelo. O livro não chegava a ser um argumento. Nem convidava à polêmica. Empolgados com o título, todas as editoras brasileiras reeditaram-no. Agora, Os Doze Trabalhos de Hércules ou A Chave do Tamanho, que são bons demais, nada, neca, neris de petibiriba. O presidente negro. Continuo meio sem entender a empolgação tanto de leigos quanto da crítica especializada com o fato. Olhem para a Nigéria. Passem os olhos na República Democrática do Congo. Examinem a Rodésia. Analisem a África do Sul. Confiram a Somália. Chequem a Ruanda. Lupa no Quênia. Todos esses países têm presidentes negros. Ou líderes negros. Não vejo primeira página de jornal destacando ou enaltecendo o fato. Isso é muito natural. Nem é preciso atravessar o Atlântico de oeste para leste ou de norte para sul, conforme vaticinou, agradecido por ausência de crises financeiras, o presidente Lula da Silva, em pronunciamento recente. Nós mesmos, brasileiros, esquecidos que somos, já tivemos presidente negro. Ou beirando o negro. Fernando Henrique Cardoso não disse para toda a nação ouvir que "tinha um pé na cozinha"? Disse. Foi um belo e corajoso pronunciamento. Só entenderam o lado maldoso da frase. Se podemos chamar de lado maldoso. Como exclamaria o quase (que lacuna, que vazio esses meses até a posse de Obama...) ex-presidente George W. Bush: "O quê? Como? Hem?" *** Acima mencionei de passagem Ruanda. Injustiça minha. Deveria ter ficado por lá ao menos uma semana, até melhor entender essa desavença entre hutsis e tutus, ou hutus e tutsis, dependendo do ponto de vista, moral étnico e filológico. Pois só agora soube, quando eu já estava de malas prontas, que Ruanda e os ruandeses, liderados pelo presidente (negro, sim senhor, e com muita honra) Kagame, prenome Paul, que eles todos, por uma vez unidos, preferiram passar para o inglês como língua oficial, deixando para lá as decantadas belezas do idioma francês. Cansaram-se, os ruandeses de parlevú pra cima e pra baixo. Agora é na base do espiquingres. No que fizeram muito bem. A história julgará e inocentará, estou certo, os responsáveis pela escolha. Após a Primeira Guerra Mundial (lembram-se?), os europeus partiram de garfo e faca para cima daquele que muitos preconceituosos insistem em chamar de "O Continente Negro" e foram dividindo as partes mais saborosas entre si. Como se fosse um peru de Natal. A Alemanha ficou com Ruanda e Burundi e uniu os dois países, outrora orgulhosamente soberanos, sob o pouco eufônico nome de Ruanda-Urundi. Ah, esses alemães! Por essas e por outras é que perderam a Segunda, e esperemos a última, Guerra Mundial. Kyniarwanda, belíssima língua local, ainda presta testemunho ao legado teutônico: criança lá vai para ishuli, como preferiam os descendentes de Goethe e Martinho Lutero quando iam para a sua Schule. Depois da Segunda Guerra, o espólio ruandês ficou com a Bélgica, coitada. Bélgica, um paisete inventado especialmente para servir de caminho para a França, cada vez que a Alemanha quisesse dar uma chegada ao Champs-Elysées para as compras. A Bélgica não sabia o que fazer com o país. Chegou a tentar negociá-lo com os portugueses, que por sua vez também mostraram desinteresse. Vira e mexe, a coisa, digo, e peço perdão, Ruanda, acabou ficando com os franceses, numa tentativa de acalmá-los depois da farra (sim, farra) que patrocinaram no decorrer da Segundona Guerra Mundial. Como é fato sabido, entre 1939 e 1945, Paris era a única cidade do mundo onde um cidadão poderia levar uma boa vida. Mas isso é outra História. Resumo desta história: durante décadas os hutus e os tutsis, e os hutsis e tutus, tiveram que oscilar entre o francês e o flamengo. Não a equipe rubro-negra que já foi da Gávea e do marinheiro Popeye. Refiro-me ao outro flamengo. O flamengo falado por alguns bélgicos, se é assim que se diz. Agora, com Obama já diante do espelho experimentando a faixa presidencial, Ruanda mandou brasa e, como nós e o resto do mundo, escolheu o inglês. Well done, digo eu. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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