Jovens se aventuram de carona na estrada

Estudantes de universidades paulistas abrem mão do conforto e viajam com caminhoneiros

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Por Davi Lira
Atualização:

Ela queria viver uma outra vida. Sem passado, sem futuro e sem compromisso. Uma vida livre, mesmo que apenas momentaneamente. Foi com esse ideal, inspirado no conto O Jogo da Carona, do escritor tcheco Milan Kundera, que uma estudante universitária de 25 anos, que prefere não se identificar, resolveu se juntar a um grupo crescente de jovens de classe média paulistana que optam por se aventurar nas estradas brasileiras.

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Seu objetivo era claro: entrar no jogo da criação de múltiplas personalidades - como sugere o conto -, ao mesmo tempo que rodava o Brasil pegando carona. "Dependendo de quem você conhece e como fluem os assuntos, você consegue demonstrar várias facetas", explica a estudante, que é aluna de Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e já viajou de caminhão para o Rio e para Salvador.

Para outro adepto das caronas, o aluno do curso de Multimeios da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Bruno Treviso, de 25 anos, a motivação principal era outra. "Queria me aventurar numa viagem à Região Sul e também ir a Buenos Aires. Queria curtir mesmo, mas o problema é que não tinha tanto dinheiro assim", conta Treviso.

Segundo ele, o plano inicial era apenas ir de ônibus até Curitiba, partindo de São Paulo com uma amiga à tiracolo aproveitando os dias sem aula. "Mas quando percebemos que havia sido fácil pegar a carona de caminhão, fizemos contatos com outros motoristas em postos de gasolina no meio da estrada onde eles estacionavam e seguimos em frente, sem muito destino", relembra Bruno. "Gosto da farra. Então não me preocupava muito com o desconforto. Fora que também tem essa coisa de conhecer um pouco de pessoas de realidades diferentes."

Bruno sempre envia o número da placa para o celular da mãe, via mensagem SMS, antes de subir na garupa, por prevenção. "Mas minha mãe hoje já nem se preocupa tanto; antes ela morria de medo."

"Os caminhoneiros achavam que não tínhamos dinheiro nenhum e chegavam até a pagar comida para gente", conta Bruno. "Diziam que uma vez dentro do caminhão passávamos automaticamente a ser seus convidados."

A justificativa para os caminhoneiros serem tão abertos às caronas de jovens universitários, segundo os próprios aventureiros, é mesmo o "combate à solidão". "Eu acho que eles dão carona porque gostam de ter alguém com quem conversar. Eles são curiosos e ficam muito tempo sós", diz uma estudante da Unifesp que preferiu manter a identidade em sigilo, apreensiva pela descoberta da mãe, que até hoje nem desconfia de como ela, por exemplo, chegou a Salvador.

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Conversas. "A nossa cobrança é pela troca de ideias. Gosto de conversar sobre transportes e notícias em geral", diz o mineiro Felipe Veronese, de 32 anos, caminhoneiro profissional há mais de 12. Segundo Veronese, que já deu mais de cem caronas desde 2006, a incidência de caroneiros nesse perfil - estudantes paulistas de classe média - vem aumentando. "Nos destinos entre cidades mais próximas é maior o número de caronas. Mas rola caronas para estudantes de São Paulo."

Mesmo sendo considerado o "caminheiro amigão", ele não se esquece de alertar sobre os riscos e proibições da ação. "A carona é problemática para quem dá e para quem pega. Tem um grau de risco. E, no caso de acidente, geralmente as seguradoras não cobrem os danos de outros ocupantes, porque parte das empresas proíbe a carona."

Para Marina Villarinho, de 25 anos, estudante formada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), a atração da carona é o fascínio pelo acaso. "O acaso produz realidades que a gente não domina", diz ela, que viaja pegando carona há pelo menos oito anos, "muitas vezes sozinha".

"Comecei pegando carona rumo a Salvador, depois Rio, Minas, Goiás e Mato Grosso; cruzei Rondônia, passei pelo sul do Amazonas, cheguei ao Acre, depois parei no Peru, próximo a Cuzco e peguei o caminho de volta. Foram mais de 15,7 mil km", relembra Marina. A jornada começou no fim de 2010 e acabou em julho do ano passado. "Essa rota eu fiz com o meu namorado. Gastamos apenas R$ 550 com algumas despesas de alimentação", relembra.

O foco principal era alcançar o Acre, já que o seu trabalho de conclusão de curso (TCC) era sobre uma tribo de lá. "Consegui conhecer no meio do caminho, por exemplo, a Chapada dos Guimarães. Praticamente não tivemos problemas."

Ela conta que a carona foi também aprendizado. "Aprendi muito sobre a humildade de pedir. Pedia para comer, para me locomover e para dormir." Os planos para 2013 já estão bem definidos. "Depois do Natal parto para a Bahia e para Minas com um amigo. Quero fazer um filme sobre o ato da carona."

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