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Maestro Gil Jardim une orquestra a rappers, slammers e ao Coral Paulistano para arrecadar doações

'Olho da Rua', um curta interpretado por moradores de rua e pelo padre Julio Lancellotti, abre uma campanha de arrecadação; veja o vídeo

Por João Marcos Coelho
Atualização:

O que podem fazer os músicos, clássicos, populares, de todos os matizes e gêneros em um momento em que a população de rua e as famílias sem teto não têm o mais básico? Muito, se tiverem consciência social. Em um momento como o de agora, a responsabilidade social e a solidariedade não podem ser escamoteadas. 

Coral Paulistano integra curta Olho da Rua,idealizado para dar visibilidade à população atendida pelo padre Julio Lancellotti Foto: Rafael Salvador

O maestro Gil Jardim, diretor artístico e regente titular da Ocam, Orquestra de Câmara da ECA-USP, vem assumindo esta consciência social durante a pandemia. No segundo semestre de 2020, chacoalhou os brasileiros com o vídeo Inumeráveis. Naquele momento, apontava que os mortos pela covid-19 não eram apenas números, mas pessoas, com famílias, cujo direito à vida vem sendo negado.

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E agora vai ainda mais fundo, com Olho da Rua, um curta de menos de 8 minutos juntando a Ocam, rappers, slammers, Coral Paulistano Mário de Andrade e performers. Mais que um curta, é o lançamento de uma campanha de arrecadação de doações para alimentação e amparo à população de rua atendida pelo padre Julio Lancellotti, da Paróquia São Miguel Arcanjo, no centro de São Paulo.

Os atores principais são os moradores de rua e o padre Julio Lancellotti. As primeiras palavras são dele: “Não trabalhamos com a população de rua. Convivemos com ela. E a nossa convivência mostra que é uma grande violência viver na rua”. Em seguida, acentua que : “Fique em casa. Onde é a casa do morador de rua? Lave as mãos. Onde? Use álcool em gel. Como?”. E conclui: “O distanciamento social talvez seja o mais natural, porque todos mantêm distanciamento social de quem vive na rua”.

Cenas rolam enquanto MCs e slammers improvisam versos como estes: “O homem pisa na lua, mas ainda tem quem não come”. Ou: “Ele morreu na rua, a culpa é dele. Ele morreu lá na rua porque ele quis”. Alguém atualiza o refrão de Arnaldo Antunes de 1987, no grande sucesso dos Titãs: “A gente não quer só comida”, emendando: “mas primeiramente a gente quer... comida”. 

O rapper Kamau, MC Lucas Afonso e as slammers Luz Ribeiro e Mel Duarte vão direto ao ponto. O coreógrafo Fernando Barcellos é responsável pela direção cênica. Tudo se entremeia com as músicas escolhidas por Gil Jardim, como o Dies Irae, do Réquiem de Mozart, e peças contemporâneas que estão no CD gravado pela orquestra em 2019: Fibers, Yam and Wire, de Alexandre Lunsqui; A Menina que Virou Chuva, de Valéria Bonafé; e A Escuridão, o Corpo Vermelho e o Fascínio, de Yugo Sano Mani. 

Detalhe: o famoso Dies Irae, Dia da Ira em português, do Réquiem em Ré Menor, K. 626, de Mozart, foi gravado especialmente para esse vídeo com os músicos e cantores captando suas participações com celulares. Vale a pena lembrar a letra, sobretudo neste momento que o Brasil vive: “Dia de ira, neste dia. ... Quanto temor haverá então quando o Juiz vier para julgar com rigor todas as coisas”. 

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“Em tempos de desigualdade social cada vez mais aguda devido à pandemia, o objetivo foi extrapolar os limites de uma simples apresentação virtual”, diz o maestro, que qualifica o projeto como uma “VideoCampanha”: “Espero que ele se transforme em milhares de marmitas quentes, calçados, agasalhos para o frio, que já chegou e ficará ainda mais rigoroso nas próximas semanas”. 

As palavras do padre Lancellotti são certeiras: “Acredito que a primeira ajuda é uma que todos podem fazer e que não custa nada: não discrimine, não tenha preconceito, não seja cruel, não fale contra a população em situação de rua. Se aproxime, olhe, dê uma palavra, ofereça um pouquinho de água pro catador, seja humano”. 

O padre Julio Lancellotti Foto: Werther Santana/Estadão

E, ao som do Dies Irae, suas palavras e as do rapper e das slammers são marcantes pela lucidez: “Nem tudo se resolve só com oração, barriga vazia se enche mesmo é com pão”. Ou: “O comer nosso de cada dia nos dai hoje... e amanhã também”. E conclui ritmado: “Pra combater este problema, é preciso mobilizar a Nação. Evoluir como indivíduo. Pare de olhar pro próprio umbigo, entenda a gravidade da situação. Quem tem fome tem pressa”. 

Afinal, conclui o padre que dedica sua vida à população de rua de São Paulo, “a misericórdia, a compaixão, a solidariedade não são uma dimensão religiosa, são uma dimensão humana”.