Não é só sobre os 3 milhões

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Por Flavio Comim
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Artigo publicado originalmente no Estadão Noite Foi manchete: 'Crise joga 3 milhões de famílias da classe C de volta à base da pirâmide'. Na superfície, a manchete é previsível dada a atual conjuntura e pode até mesmo passar desapercebida. Afinal, os fatos recentes da economia brasileira, tais como o aumento da inflação, das taxas de juros e do desemprego, com restrição de crédito, já sugerem uma massiva perda de poder aquisitivo de grande parte da população brasileira, que atinge a todas as classes. Talvez a velocidade na qual essa reversão esteja acontecendo seja um fato mais notável, pois o que foi construído durante um período mais longo, de 2006 a 2012, parece não resistir a 2015-2017. Mas isso é apenas um detalhe. A grande notícia atrás da notícia é que essa 'volta' das famílias da classe C às classes D/E é sinal de um modelo econômico e de desenvolvimento que fracassou e que deve cobrar um dos maiores preços já vistos na história do País por esse fracasso.  A estratégia de promoção do crescimento econômico baseada na expansão da produção de bens duráveis financiada pelo crédito não é nova na história do País. De fato, não existe per se nenhum problema em circunstancialmente se ter uma política contra-cíclica de demanda para ajustes de curto prazo. Mas tornar isso o motor do crescimento nunca foi sustentável nem na teoria nem na prática. É mais do que sabido que um crescimento econômico sustentável depende de investimentos e desenvolvimento de fatores estruturantes. Investimentos em educação, ciência e tecnologia, aumento de produtividade, em um bom ambiente de negócios e em instituições de governança são básicos para o crescimento e desenvolvimento econômico. A 'volta' das famílias de classe C ao mundo D/E mostra que esse modelo anterior não foi sustentável e que tampouco pode ser considerado como alternativa para saída dessa crise. O 'óbvio econômico' do que precisa ser feito parece não fazer parte do 'óbvio político', e o País deve amargar um fracasso perplexificante. A paralisia política é também sinal que o período anterior de prosperidade não foi capaz de seriamente mudar o anacronismo das estruturas políticas nacionais, refletidas em políticos que visam quando muito apenas interesses de grupos. A 'volta' de 3 milhões de famílias ao mundo D/E deve vir acompanhada de custos sociais que são incalculáveis nesse momento. A perda da dignidade econômica de quem já teve é muito dolorosa psicologicamente e vários países que tiveram retrocessos econômicos parecidos tiveram consequências de longo prazo dramáticas. Não se trata das previsões que sinalizam que os brasileiros voltarão a ter um nível de renda semelhantes apenas em 2022 (ou em 2030, se levado em consideração o efeito da desvalorização cambial), mas de investimentos importantes que deixarão de ser feitos justo quando mais se precisa. O Brasil passa por um momento demográfico muito delicado com o envelhecimento de sua população e diminuição de sua população jovem em um curto espaço de tempo. Hoje temos 23,19% de crianças entre 10-14 anos. Mas em 2030 esse porcentual deve ser de 17,69% da população. Uma nova década perdida pode ter efeitos irreversíveis sobre crianças e jovens que deveriam ser educados, mas que sairão, devido à crise, dos trilhos da educação e que poderão voltar depois somente com custos bem mais elevados. O tecido social brasileiro continua muito frágil mesmo depois de todo período de boom de consumo. As taxas de homicídios nas cidades brasileiras estão entre as maiores do mundo (pesquisa recente mostrou que entre as 50 cidades mais violentas do mundo, 19 são brasileiras) e o agravamento da crise pode resultar em uma erosão social de magnitudes imprevisíveis. Nesse quadro, a deterioração fiscal da grande maioria dos Estados brasileiros, responsáveis pela segurança pública e grande parte da educação no País, parece colocar em marcha um processo de desinvestimento em bens públicos essenciais para o futuro do Brasil. A queda do consumo das famílias com consequente deterioração de seu padrão de vida é apenas parte de um cenário que evidencia o fracasso de várias políticas econômicas e sociais que foram pensadas de maneira desarticulada privilegiando benefícios políticos de curto prazo. A 'volta' da classe C ao mundo D/E é sinal que nossas instituições políticas continuam as mesmas, que nossa matriz econômica não evoluiu, que os ganhos sociais não foram sustentáveis e que, dada nossa conhecida vulnerabilidade histórica, somos muito mais vulneráveis ao 'ladeira abaixo'. Essa 'volta' da classe C possui um simbolismo cruel de um país que conseguiu por alguns anos se pensar diferente e que agora tem que enfrentar-se, em todas suas mazelas, para poder seguir em frente.* Flavio Comim é professor da UFRGS e da Universidade de Cambridge

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