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Nem Guerra nem Paz

O velho Tolstoy não entraria na batalha sobre as novas traduções de 'Guerra e Paz'.

Por BBC Brasil
Atualização:

Duro, no Rio, me meti a tradutor e a Seleções do Reader's Digest me deu um texto da série "Meu Personagem Inesquecível". O dinheiro da Seleções era bom, mas aprendi que traduzir é difícil. A revista não me mandou outro texto, nem eu insisti. Meu inglês não era lá estas coisas e, pode parecer incrível, na época, eu falava - mal - mas lia russo melhor que inglês. Naqueles delírios dos 60 minha meta era a universidade Patrice Lumumba, em Moscou, e meu modelo - e personagem inesquecível - era meu tio José Guilherme Mendes que, entre outros trabalhos, traduziu O Degelo, de Ehrenburg. Até aquela época, antes de começar a trabalhar, eu lia. Aprendi a gostar de livros não só pelos parentes escritores e jornalistas como o Murilo Mendes, José Guilherme e Ricardo Gontijo mas, antes deles, pelas horas passadas na sala de estudos do internato em Pará de Minas. Lia tudo, da Biblioteca das Moças aos russos, quase todo Dostoiévski e Anna Karenina de Tolstói, mas nunca terminei Guerra e Paz. Naquela época, católico e secretário da carolíssima Congregação Mariana, comungava quase todos os dias. Um dia o tio José Guilherme me mandou o livro Furacão sobre Cuba com uma dedicatória simpática do Sartre. O frei Sardinha disse que o livro teria de passar pelo crivo dos censores no internato. Quando me devolveu, em cima da assinatura do Sartre tinha um carimbo e a assinatura do frei. Abandonei o catolicismo. Com estas histórias queria chegar a Nova York, onde entrevistei Alexandra Lvovna Tolstaya, a filha mais nova, favorita e secretária de Tolstói. Na Rússia, contrariando o pacifismo do pai, ela tinha sido condecorada pela sua coragem na Primeira Guerra. Recebeu três medalhas de São George e foi promovida a coronel. Depois da revolução foi bem tratada pelos bolcheviques e nomeada diretora do museu Yasnaya Polyana, a casa onde a família tinha morado e Tolstói tinha escrito seus livros. Depois foi presa cinco vezes e em 1929 veio para Nova York, onde criou a Fundação Tolstói. Ajudou milhares de refugiados russos e intelectuais, entre eles Vladimir Nabokov e Sergei Rachmaninoff. Na época da Guera Fria, era visada e protegida. Depois de muita relutância, concordou em me dar uma entrevista na casa onde ficava a Fundação Tolstói, a 60 quilômetros ao norte de Nova York. Ela estava com 90 anos (morreu com 95) e remava todos os dias. Eu me sentei na proa do barco, a presidente da Fundação, Tatiana, na popa, e ela, no banco do meio, remava e contava histórias. Neste momento há uma batalha nos Estados Unidos sobre duas novas traduções de Guerra e Paz. Os críticos e acadêmicos têm debates apaixonados, mas o velho Tolstói não entraria nesta briga. "Papai tinha 40 anos e se entusiasmou quando escreveu Guerra e Paz, mas achava que não era um romance como Anna Karenina que escreveu depois, com quase 50 anos. A partir daí se interessou por pacifismo e filosofia e perdeu completamente o interesse pela literatura. Vinha gente de toda Rússia e de outros países falar com ele sobre Guerra e Paz e ele não tinha o menor interesse, paciência, nem lembrava dos personagens. Achava aquilo uma infantilidade e apagou tudo da memória." BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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