O Brasil e a China no século XXI: nova parceria ou nova dependência?

Artigo publicado originalmente no Estadão Noite Nesta semana, o Brasil e a China vivem dias intensos. O anúncio de um plano de investimentos de cerca de U$ 53 bilhões de dólares pelo primeiro-ministro Li Keqiang demonstrou a intensidade crescente da presença chinesa no País. Poucos são os que deixaram de se impressionar pelo anúncio da construção ferrovia transoceânica, ligando o Atlântico ao Pacífico, e que representaria um marco no processo de integração transcontinental. 

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Por Cristina Soreanu Pecequilo
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Os investimentos anunciados correspondem a diversos setores-chave para o desenvolvimento da região: energético (fontes alternativas e petróleo), agronegócio (liberação de compra de carne bovina e aprofundamento dos negócios em andamento), mineração (parceria com a Vale), aviação com foco na aquisição de produtos da Embraer e cooperação na área tecnológica, mantendo a agenda de construção de satélites de monitoramento e ações na área de telecomunicações. As iniciativas se somam a outras em andamento no mercado automotivo e na arena de tecnologia.

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Mais do que listar projetos, ou iniciar críticas fáceis como as apresentadas sobre a ferrovia por seus impactos e inviabilidade (sem estudos amparando essas afirmações), é preciso entender as manifestações chinesas como um processo de continuidade e quebra nas relações bilaterais. Continuidade para laços com o parceiro tradicional e que bilateralmente e via Brics cresceu em importância, e ruptura no que se refere aos riscos envolvidos em qualquer acordo entre potências. 

Ainda que a expansão global chinesa não venha atrelada a pressões, mas sim a um projeto de crescimento conjunto, sintetizado no lema diplomático "desenvolvimento harmonioso", a forma como esse desenvolvimento será aproveitado depende principalmente do país que recebe os investimentos. Para o Brasil, os impactos de curto prazo da entrada de capital chinês são positivos em um momento no qual o governo se encontra em posição política defensiva e pressionado pelo ajuste fiscal. Com isso, será possível a manutenção de projetos de infraestrutura, reduzindo o risco de uma recessão mais profunda. Mas só isso não será suficiente sem metas de crescimento e geração de emprego. As implicações de médio e longo prazo são mais complexas: é necessário uma visão pragmática. 

Quase nada se discute sobre como a parceria afeta a posição do País no mundo, na América do Sul e os projetos de integração. Não é só o Brasil que entra nos "pacotes" chineses, mas outras nações como Peru, Bolívia, Equador e Argentina, o que pode enfraquecer compromissos políticos. Não deixa de ser contraditório constatar que o Brasil talvez não cumpra seus compromissos com o Banco dos Brics, mas que irá receber recursos da China e do Banco de Desenvolvimento Asiático. A hipótese de que as relações bilaterais com a China apresentam menor nível de subordinação do que as com os Estados Unidos é parcialmente verdadeira. É fato que a China se preocupa mais com o crescimento econômico na cooperação Sul-Sul, até como instrumento de fortalecimento e manutenção de seus mercados do que os norte-americanos. Contudo, esse é um processo recente, cujos efeitos não são conhecidos. 

Para lições do que pode ocorrer, é preciso observar as interações África-China, centralizadas desde 2000 no Fórum de Cooperação China-África (FOCAC). A face da África se transformou, só que problemas sociais e estruturais demandam esforços políticos e econômicos. Não basta construir uma obra de infraestrutura se as condições internas não mudam. A correção da desigualdade e a estabilidade dependem menos da China do que dos parceiros, que podem perder oportunidades de barganha e espaços geopolíticos. Na América Latina, a ofensiva chinesa vem desde 2004, não é de agora. A diferença é que hoje se tornou mais visível e mais intensa.

China e Estados Unidos (ou G-2) oferecem duas coisas, em diferentes proporções, ao competirem geopolítica e geoeconomicamente no mundo: discurso positivo e recursos. Dentre estes, a realidade nos faz pender aos investimentos, até por necessidade. Se isso é nova parceria ou nova dependência, caberá ao Brasil definir. Sem essa visão, coloca-se em xeque uma projeção internacional que o País tem, e pode ampliar. Qualquer iniciativa de cooperação deve ser uma escolha estratégica brasileira e não uma saída por falta de opção.  * Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e autora de 'Os Estados Unidos e o Século XXI' e 'A União Europeia'

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