O discurso de Abu Mazen e a troca de papéis

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Por Michel Gherman
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Artigo publicado originalmente no Estadão Noite Nessa quarta-feira, 1, o presidente Abu Mazen fez um duro discurso na Assembleia Geral da Nações Unidas. Segundo informações da imprensa israelense, no dia anterior, Bibi Netanyahu, o premiê israelense, telefonara para a Autoridade Nacional Palestina conclamando que palestinos e israelenses retornassem às negociações de paz.  Sem dúvidas, poucos momentos simbolizam tanto os últimos anos nas relações entre palestinos e israelenses: Bibi não tem perdido oportunidade em sinalizar para o público interno sua oposição à fórmula de "dois Estados para dois povos". O premiê israelense tem sido conivente com a expansão das colônias nos territórios ocupados e bastante omisso no combate a violência de grupos extremistas. Entretanto, nas vésperas do discurso palestino, Bibi se lembra das negociações de paz. O presidente Mahmoud Abbas, por outro lado, tem sido bastante claro, para o público externo e interno, em relação às suas intenções. Em árabe e inglês, Abu Mazen tem se declarado a favor da solução de dois Estados, tem se oposto a uma terceira intifada e tem investido esforço em uma ofensiva diplomática palestina.  Pois bem, justamente agora, em seu discurso na ONU, ele assume tons mais radicais, utiliza referências religiosas e ameaça romper definitivamente os acordos de Oslo. Aqui cabe a pergunta: o que leva Bibi e Abu Mazen a agirem de forma inversa a sua prática política interna justamente em um palco internacional tão privilegiado? Acredito que o discurso de Abu Mazen marque o início de uma nova fase nas relações entre palestinos e israelenses. Marcado nos últimos anos como um político moderado e comprometido com a paz, o presidente palestino constituía um risco ao atual governo israelense. Abu Mazen consegue que a Palestina seja aceita como Estado observador nas Nações Unidas, cria uma onda de simpatia na Europa e nos Estados Unidos e avança na direção da deslegitimação da política ocupação e das atuais práticas de Bibi Netanyahu e de seu governo. Por outro lado, Bibi joga em campos opostos. Nos últimos anos (ele foi reeleito agora para uma segunda cadência), seu governo tem sido responsável pela expansão dos territórios ocupados, tem se colocado ao lado de grupos extremistas judeus e tem tido pouca atuação no que se refere a repressão de grupos terroristas da extrema direita israelense. Neste sentido, pode-se dizer que os anos de governo de Abu Mazen apontam para o fortalecimento externo da posição palestina e para o afastamento de elementos radicais de seu governo. A imagem externa de Mahmoud Abbas é positiva: ele parece aliado do Ocidente e comprometido com uma solução pacífica. Internamente, entretanto, sua situação é outra.  Há um sentimento crescente na sociedade palestina de que o atual presidente logrou poucos ganhos práticos. Para além do reconhecimento internacional, a ocupação dos territórios da Cisjordânia continua, as barreiras do Exército israelense não diminuíram o suficiente e os assentamentos apenas cresceram.  Essa realidade pode explicar alguns dos trechos mais radicais do discurso de Abu Mazen. Em primeiros lugar, a centralidade dada por ele a questões religiosas e à Mesquita de Al Aaqsa. Parece aqui que ao se referir às "ameaças israelenses aos lugares santos para as religiões abrâmicas", Abu Mazen queira aplacar a oposição de grupos conservadores e religiosos do campo palestino.  Em outro ponto, o presidente da Autoridade Nacional Palestina ameaça romper com o cumprimento dos acordos de Oslo. Aqui há sinalização clara à colaboração com Israel no campo da segurança. Há poucas dúvidas de que é esta colaboração que tem evitado atentados e o crescimento do extremismo islâmico nos territórios palestinos. Ao afirmar que pretende se afastar de Israel, Abu Mazen faz uma ameaça velada à segurança do Estado Judeu. Por fim, Mahmoud Abbas joga pesado na deslegitimação do Estado de Israel, acusando-o de cometer "práticas de apartheid" contra a população sob ocupação, tentando sinalizar para grupos radicais que exigem o rompimento com Israel. Parece-me claro que Bibi aposta na radicalização palestina para sair do isolamento que ele criou. Hoje, Abu Mazen é uma liderança mais confiável e importante do que o primeiro-ministro israelense. Por isso Bibi tenta jogá-lo de volta aos braços dos radicais.  O discurso de Abu Mazen poderia, nesse sentido, representar justamente a vitória de seu inimigo político que reverteria, em uma situação de explosão de violência palestina, a situação de pária que Israel ameaça entrar. Por outro lado, com seu discurso radical, Abu Mazen pode estar tentando aplacar oposições mais militantes palestinas e avançar em um cenário de maior reconhecimento político que viabilize o tão sonhado acordo de paz.* Michel Gherman, historiador e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ) da UFR

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