PUBLICIDADE

O drama da fome, 50 anos depois

Documentário mostra a lenta melhora na vida do nordestino; desnutrição de crianças cai, apesar de deficiências

Por Emilio Sant'Anna e de O Estado de São Paulo
Atualização:

As filas de retirantes nas estradas empoeiradas do sertão nordestino brasileiro não estão mais lá. As crianças esquálidas também sumiram. A insegurança alimentar, no entanto, continua no mesmo lugar, rondando a casa dos pequenos agricultores do semi-árido. Meio século separou a realidade dos que fugiam da seca e da fome do cotidiano dos que hoje vivem do auxílio do governo federal e do pouco que conseguem plantar.   Veja também: Assista ao vídeo sobre 'O Retorno'  Veja as imagens do filme  Festival leva 30 filmes brasileiros à Polônia   As mudanças estão registradas na obra de um cineasta brasileiro. Rodolfo Nanni, 83 anos, mais de 20 mil quilômetros percorridos na região em duas viagens. A primeira, em 1958, se transformou no hoje extinto curta-metragem O Drama das Secas - do filme restam pouco mais que algumas cenas que o tempo conservou.   Em outubro de 2006, Nanni voltou ao sertão de Pernambuco para encontrar o que ele chamou de "evolução lenta" no local. "Não dá para dizer que não melhorou, mas quando eu encontrei uma mulher retirando água suja de um buraco no chão da mesma forma que havia mostrado em 1958, ficou claro que não foi o bastante", diz. No próximo mês, o veterano diretor lança O Retorno, refilmagem da obra de 1958.   De fato, as mudanças são visíveis e podem ser medidas. A 3ª Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS) apresentada este mês pelo Ministério da Saúde e pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) mostra uma clara evolução. Entre a PNDS anterior, de 1996, e a apresentada este mês, com dados de 2006, a mortalidade infantil caiu 44%. A desnutrição das crianças está 1,6% abaixo do limite aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a falta de acesso a consultas de pré-natal afeta apenas 3,6% das mulheres.   Quando Nanni chegou à região do semi-árido nordestino, em 1958, não precisou procurar por um sertão estereotipado, com personagens famintos, terra rachada e gado morrendo de sede. Esse sertão foi ao seu encontro enquanto passava pelas estradas de terra da região em um jipe cedido pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs).   No trajeto que percorreu até o sul do Estado do Ceará, famílias de famintos se amontoavam à beira da estrada, deixando suas casas à espera de um pau-de-arara que as levassem para longe da seca e da fome.   A viagem do cineasta foi feita por recomendação de Josué de Castro, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). O filme que resultou dessa viagem, O Drama das Secas, levava à tela o que Castro descrevia em seus livros: a fome como resultado da ação do homem.   Agora, em O Retorno, filmado em outubro de 2006 e com lançamento programado para o próximo mês, Nanni vai além. Retrata cenários e personagens muito próximos do que encontrou no século passado, mas aponta também para um futuro que pode ser preocupante. "Minha preocupação é o que será das crianças que são mostradas no filme", diz Nanni.   O cineasta lembra que o aquecimento global pode levar a região a enfrentar secas como as dos séculos 19 e 20, que causaram fome no Nordeste. O diretor não acha que seja uma visão pessimista, mas um alerta sobre o que pode já estar acontecendo.   Personagem de O Retorno, o agricultor Manoel Francisco do Nascimento é um dos que vêem a situação na região evoluir lentamente. Em seu sítio, a roça não lhe fornece muito mais do que comida que coloca na mesa de sua família. A renda vem mesmo de seu trabalho no Sindicato Rural de Garanhuns (PE).   O agricultor afirma que nem mesmo os enormes açudes criados pelo governo do Estado de Pernambuco foram capazes de vencer a miséria da região. "Não adianta nada colocar um mar de água como aquele se o agricultor não tem dinheiro para fazer a irrigação", diz. "É preciso comprar bomba, mangueira, parte elétrica e quem tem dinheiro?", pergunta.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.