
31 Outubro 2009 | 00h00
O Lula contraditório, a "metamorfose ambulante", como certa vez se autodefiniu, reaparece quando ele se manifesta sobre o cerco do governo Hugo Chávez ao que ainda resta de independente na imprensa venezuelana. Três anos atrás, fazendo campanha pela reeleição do caudilho, subiu num palanque no vizinho país para afirmar que o caudilho era "vítima da incompreensão e do preconceito" da mídia. Mas, anteontem, numa entrevista por escrito ao El Universal, de Caracas, Lula se recusou a comentar as perseguições chavistas aos órgãos de informação ? só este ano 32 emissoras de rádio foram tiradas do ar na Venezuela. Preferiu falar da situação no Brasil. "No meu país, a imprensa goza de total liberdade", ufanou-se, omitindo embora o caso do Estado, sob censura prévia há 3 meses por decisão judicial. E completou, com palavras irrespondíveis, se tomadas pelo valor de face: "Sou duramente criticado no Brasil por boa parte da imprensa, muitas vezes de maneira injusta, em minha opinião. Mas isso não muda em nada minha convicção de que a liberdade de imprensa é essencial."
Se assim é, Lula não deveria se dar ares de mentor da mídia, ainda que ela tenha toda a liberdade de rejeitar, criticar ou mesmo tratar com sarcasmo os seus preceitos. Na semana passada, por exemplo, ele disse à Folha de S.Paulo que a missão do jornalismo é apenas informar e não fiscalizar o poder, traindo, quem sabe, uma fantasia de ver a imprensa brasileira transformada em um grande Diário Oficial. Isso não é nada perto do que ele fez na quarta-feira em São Paulo, antes de seguir para Caracas. Em mais uma contribuição para a série "nunca antes?", pela primeira vez Lula atiçou uma plateia contra jornalistas. Falando para cerca de 3 mil catadores de lixo reunidos na feira Expocatadores 2009, abandonou em dado momento o discurso escrito e voltou-se para os "companheiros" repórteres. "Hoje vocês têm a oportunidade de fazer a matéria da vida de vocês." Bastaria "esquecer a pauta do editor" e se "embrenhar no meio dessa gente" para ouvi-la falar de sua vida. E ordenou, com uma acusação implícita: "Publiquem apenas o que eles falarem. Não tentem interpretar."
Ficasse nisso, a exibição de prepotência ainda seria um vexame venial, ao menos para os padrões da retórica lulista. Mas, na ânsia de mostrar que se identificava com a plateia e, como sempre, empolgado pelo som da própria voz, ensinou que, se os jornalistas seguissem a orientação do presidente-pauteiro, entenderiam "por que a figura do chamado formador de opinião pública, que antes decidia as coisas neste país, já hoje não decide mais". Na apoteose, ungiu a audiência com uma louvação desencapada. "Esse povo não quer mais intermediários" ? ou seja, a imprensa. "Esse povo tem pensamento próprio, esse povo anda pelas suas pernas, trabalha pelos seus braços, enxerga pelos seus olhos e fala pela sua boca." Deu no que teria de dar: os catadores em peso vaiaram os jornalistas. Se Lula quisesse e as circunstâncias permitissem, o "pensamento próprio desse povo" poderia provocar uma reação ainda mais agressiva.
É assim que funciona a política da manipulação autoritária: neutralizados, pelo descrédito, os intermediários entre o líder e os liderados ? as instituições do Estado e da sociedade e a imprensa independente ?, quem quer que ouse criticar o Chefe será facilmente execrado como inimigo do povo.
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