
14 de dezembro de 2011 | 19h38
Laurent também se apaixonou pelo tempero. Transformou-o em tema das aulas de sua escola de cozinha em São Paulo. Na verdade, o tempero deveria chamar-se sal com merkén. Afinal, esse coadjuvante é adicionado pelo homem, não pela natureza.
O merkén caiu nas graças dos chefs chilenos e começa a ultrapassar as fronteiras do país. Até então, circunscrevia-se à culinária dos mapuches – o povo indígena da região centro-sul daquele país e do sudoeste argentino, que o inventou séculos atrás – e da população chilena em geral. Agora, é item gourmet. Virou mania nos restaurantes de Santiago, Concepción, Puente Alto, Viña del Mar, Valparaíso, Talcahuano e Antofagasta. Os chefs Matías Palomo, do Sukalde, e Tomás Oliveira, do Casa Mar, estrelas da capital, utilizam-no com fervor cívico. Incorporam o merkén a pratos requintados e o deixam à mesa para a clientela temperar como quiser. Já a população o aplica em tudo: nos coquetéis e no pisco; na manteiga, nas verduras, legumes e massas; nos queijos de vaca, cabra ou ovelha; no ceviche e no molho tártaro; nas empanadas e purês; nas receitas de peixe, nos moluscos e crustáceos, incluindo a centolla; nas carnes vermelhas e brancas; na finalização dos pratos.
O merkén tradicional leva 70% de ají da variedade cacho de cabra (pimenta da família da caiena, cereja, jalapeño e peperoncino), primeiro desidratado e depois defumado no forno, sendo a seguir moído e acrescido de 20% de sal e 10% de sementes de coentro. O resultado é um pozinho vermelho com fragmentos de variadas tonalidades. Entretanto, há também versões com orégano, alho, anis etc. O melhor e mais prestigiado merkén é o tradicional. Os mapuches, ainda numerosos no Chile, onde formam aproximadamente 4% da população, tem o ají em alta conta. Além de louvarem sua capacidade de agregar sabor à comida, atribuem-lhe a função mágica de proteger contra a inveja e o mau-olhado e poderes medicinais como analgésico, anti-inflamatório e desinfetante.
O povo mapuche (gente da terra, na língua deles) é forte, bravo e orgulhoso. Enfrentou por quase três séculos o colonizador espanhol desde sua chegada ao extremo sul da América, na Guerra de Arauco. Não lhe deu trégua. Quando a Espanha autorizou seus soldados a escravizarem os índios detidos no conflito, em 1608, revidou ao invasor europeu com ataques surpresas às suas estâncias, roubando-lhe gado, mulheres e crianças. A Espanha acabou reconhecendo a autonomia dos territórios mapuches. Entretanto, após a independência do Chile e da Argentina, eles foram divididos em reduções e reservas. Atualmente, os índios continuam a lutar pelo reconhecimento dos territórios primitivos e reconhecimento da sua tradição. Obviamente, mesmo na comida do campo de batalha, nunca lhes faltou merkén.
O fogão e o forno típicos chilenos harmonizam a culinária espanhola com influências mapuches, originando a denominada comida "criolla" ou "de la gente de la tierra". Conservam, por exemplo, receitas indígenas emblemáticas: o catuto, alimento feito com trigo moído e água, que acompanha marmeladas e certos molhos; o charquicán, uma preparação à base de carne-seca, abóbora, cebola, azeite e ají; a harina tostada, adoçada com açúcar e mel, servida com leite para crianças e vinho tinto para os adultos; e o muday, um pinhão saboreado cozido ou na forma de suco, com água e mel. Entretanto, no pódio gastronômico brilha o merkén, que agora começa a ser conhecido internacionalmente como importante tempero.
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