Os mineiros e o poeta

Para escritor chileno, episódio em Copiapó forjou ‘unidade provisória’ em um país ainda dividido e desigual

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Por Ivan Marsiglia
Atualização:

O clima de união nacional em torno da operação de resgate dos 33 mineiros em Copiapó, norte do Chile, durou menos de um dia. Na quinta-feira, enquanto o presidente Sebastián Piñera ainda posava para fotos ao lado dos heróis içados do fundo da terra no início da semana, a ex-presidente socialista Michelle Bachelet fez críticas direto do Vietnã - onde estava em visita oficial pela ONU -, criticando as falhas de segurança que causaram o soterramento.

 

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Ao dizer que o acidente "poderia ter sido evitado", Bachelet devolvia na mesma moeda a acusação que lhe fora feita em fevereiro, durante o terremoto que matou mais de 400 pessoas no país, pelo então candidato da oposição, Piñera - para quem teria havido "uma negligência tremenda".

 

Novidade nenhuma para um país rachado por divergências políticas, onde o antigo e o moderno convivem em sincronia. É a opinião do filósofo, escritor e ex-diplomata chileno Antonio Skármeta, de 69 anos. "Passada a unidade provisória das tragédias", diz, "países voltam às suas rotinas".

 

Na entrevista a seguir, concedida por telefone de Berlim, na Alemanha, onde participava de uma conferência sobre literatura, Skármeta - autor do romance O Carteiro e o Poeta, inspirado na vida de Pablo Neruda, que virou filme de sucesso na década de 90 - contou suas reminiscências de infância em Antofagasta, mesma região onde a mina pariu de volta as 33 almas, em um espetáculo transmitido ao vivo para o mundo todo. Para o escritor, as cenas do deserto chileno, carregadas de metáforas de nascimento e ressurreição, "mexeram com o inconsciente poético da humanidade".

 

Ainda assim, e a despeito de alpinismos políticos da direita e da esquerda no país, o escritor - que lança ano que vem seu novo livro no Brasil pela Record, Um Pai de Cinema - não crê que do episódio se extraiam melhorias significativas para a vida desses incansáveis trabalhadores. "Eu conheço a rotina: assim que termina o heroísmo, vem a burocracia e, então, o esquecimento."

 

Que memória afetiva o sr. tem de Antofagasta, sua terra natal, no norte do Chile?

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Quando alguém vem do norte do Chile, do deserto, tem a reputação de que suporta bem as dificuldades, o rigor do clima, trabalha duro e não vê muito verde. Na minha infância em Antofagasta, havia árvores apenas na praça: no resto da cidade, não havia nada, e era muito difícil encontrar água. Então, a riqueza do Chile do norte está escondida debaixo da terra. E, para se chegar a ter alguma coisa, é preciso mergulhar na escuridão. É uma zona dura e de homens fraternais, pois as dificuldades de um são as de quem está a seu lado também.

 

O sr. conviveu diretamente com esses trabalhadores durante sua infância?

Conheci mineiros e tive até um familiar que trabalhava nas minas. Escrevi um artigo sobre ele há alguns anos, no El País. Nele, eu conto a ocasião em que fui, com um tio, até as minas de Antofagasta, uma viagem de mais de três horas, para acompanhar o enterro desse nosso parente. Meu pai, que foi uma pessoa de muitos ofícios, trabalhou uma época como vendedor de bebidas para os trabalhadores das minas de Chuquicamata, em Calama. Ele, que nunca bebeu uma gota de álcool na vida, porque não gostava, levava garrafas de vinho para os mineiros nos finais de semana. E convivia com essa gente que tem um trabalho tão desesperado, difícil, metidos nas minas. E tinham muita sede: bebiam bastante. Outra coisa que acontece no norte é que, como os mineiros passam longas temporadas sós, longe da família, frequentam los buques, barcos que transportam prostitutas. A elas, se referem, de maneira carinhosa, como las ninas.

 

Essa imagem de força e solidariedade lembra o sertanejo de Euclides da Cunha.

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Exato. Quanto mais difícil é sua vida, mais sensível é um homem à dor e à solidão do outro. Os mineiros, em todas as partes do mundo, têm fama de laboriosos e explorados. A canção mais expressiva que existe sobre suas vidas foi cantada nos anos 50/60 pelo americano Tenessee Ernie Ford. Chama-se Sixteen Tons (16 toneladas) e, curiosamente, se tornou muito popular no Chile, apesar de os mineiros não falarem inglês. Nossas minas, naquela época, eram de propriedade de companhias americanas ou inglesas. E a letra dizia: "You load sixteen tons, what do you get / Another day older and deeper in debt / Saint Peter don’t you call me ‘cause I can’t go / I owe my soul to the company store". Você carrega 16 toneladas - no caso, de carvão - e, em troca, só envelhece e aumenta a sua dívida. E o mineiro pede aos céus: "São Pedro, não me chame pois devo minha alma à companhia". Company store era o que no Chile se chamava la pulpería, a única venda ao lado da mina onde os trabalhadores podiam comprar arroz, feijão, açúcar, azeite. E era de propriedade, também, dos donos - que vendiam os alimentos ao preço que queriam. No final da semana, quando o mineiro ia receber seu salário, só tinha dívidas.

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O Chile guarda fortemente também as marcas do massacre dos trabalhadores do salitre em Santa María de Iquique, não?

Santa María de Iquique! Uma das músicas mais belas do cancioneiro chileno, composta por Luis Advis, trata do episódio. Narra o massacre de 3 mil trabalhadores que protestavam na cidade portuária de Iquique. Essa memória existe e, de alguma forma, se fez presente em Copiapó. A solidariedade entre os mineiros, de que falo, tem um conteúdo político também. No sentido de uma consciência de classe. E há uma tradição forte de luta política no norte. O fundador do Partido Comunista de Chile, (Luis Emilio) Recabarren, nasceu na região. Mas vale notar que há dois tipos de minas e mineiros no Chile. Um, moderno, dos trabalhadores de grandes companhias que respeitam seus sindicatos e lhes pagam bem. Esses estão nas grandes minas de cobre de Chuquicamata, que pertenciam a companhias estrangeiras nacionalizadas por Salvador Allende. Por isso, derrubaram-no. Mas, graças a isso, o Estado chileno hoje é rico.

 

As minas de Copiapó são de outro tipo.

Em Copiapó estão minas modestas, que não produzem grandes riquezas e onde, lamentavelmente, se descuidou das medidas de segurança. Há dois anos esses problemas já haviam sido denunciados. Mas os donos afirmaram tê-los solucionado e o governo deu-lhes voto de confiança, autorizando o funcionamento das minas. É algo que precisamos investigar.

 

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No artigo que publicou recentemente no 'La Repubblica', o sr. defende que 'as minas que enchem as arcas fiscais do governo deveriam servir para criar igualdade de oportunidades'. Agora, com os 33 mineiros transformados em heróis nacionais, haverá reflexos no mundo do trabalho chileno?

Uma vez que termine o espetáculo, isso que alguns chamam de milagre e outros de bênção, o Chile vai retornar a sua rotina. Que é a das grandes desigualdades e injustiças. O episódio pode até estimular o Parlamento e o Poder Executivo a apresentarem novas leis, que aperfeiçoem as medidas de segurança e melhorem a remuneração dos trabalhadores. Mas eu conheço a rotina: assim que termina o heroísmo, vem a burocracia e, então, o esquecimento. Agora, esse caso despertou uma paixão... Nunca acreditei que a humanidade tivesse essa ternura. Gostaria que me explicassem por que ele importou, quando no mundo há tanta gente sofrendo, torturada, aniquilada.

 

O sr. arrisca uma explicação?

Em meu artigo levanto três hipóteses. A primeira é que, com a primeira descida de ajuda, meteu-se junto uma câmera de vídeo. Isso transformou o episódio num fenômeno midiático imediato. Segundo, porque no inconsciente poético da humanidade há essa imagem da formação cristã e também budista, que é a ideia de renascimento. De retorno à vida de alguém que está enterrado.

 

O nome da cápsula era Fénix...

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Mesmo? Eu não reparei (risos). Essa ideia de que a vida não termina quando estamos enterrados, que se vai renascer, isso despertou emoção em todo mundo. Como quando Jesus disse a Lázaro: "Levanta-te e anda". A terceira hipótese é da terra que dá frutos, oferece a vida. A cena do resgate é como um parto, uma emoção universal.

 

Seu artigo afirma também que houve uma crítica mesquinha ao presidente Sebastián Piñera, segundo a qual o presidente teria imposto seu protagonismo durante o resgate. Ele desempenhou um bom papel?

Piñera é um action man, um político que quer se mostrar o tempo todo como executivo. Estamos lidando com símbolos. E ele cuida de muito de sua imagem. Não sei se você sabe, mas depois do terremoto no Chile, Piñera mal chegara ao governo e fez seus ministros vestirem uma jaqueta vermelha, com as cores da seleção de futebol chilena, que disputava a Copa do Mundo. Com isso, criou a sensação de que havia um time jogando junto pelo Chile - uma imagem publicitária muito eficaz. Dito isso, creio que Piñera se comportou com grande intuição em Copiapó, viu que era um tema que mexia com as emoções de todos os chilenos, não importando a posição política que tivessem. Fez o que deveria ter feito qualquer presidente do Chile, fosse comunista, socialista ou democrata-cristão. E saiba que me considero um homem de centro-esquerda, eleitor da Concertação. Apoiei os governos anteriores.

 

A ausência da ex-presidente Michelle Bachelet foi notada. Ela deveria estar lá?

Não posso responder, pois estava fora do país. Fui a Los Angeles ver a estreia da ópera O Carteiro e o Poeta, com Plácido Domingo, e depois à Espanha, apresentar meu novo livro. Como ela foi escolhida para dirigir um órgão das Nações Unidas para as mulheres, parece-me que estava no exterior.

 

Chamou a atenção também a presença do presidente boliviano, Evo Morales. Bachelet já havia conversado com ele sobre um acordo que assegurasse ao país vizinho uma saída para o mar. Acha que, no atual governo, isso pode avançar?

Não creio. Acho que esse episódio pode suscitar uma simpatia entre os dois países, mas diplomaticamente falando creio que foi só um episódio sentimental. Todas as decisões que se fazem em relação aos países vizinhos são discutidas com calma, não são feitas com base em impulsos emocionais. A política externa do Chile é muito consequente, pensada e independente do ciclo político de cada governo. Isso se aplica aos tratados vigentes. Claro, nessa semana houve uma aproximação porque um dos mineiros era boliviano.

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O sr. diz que o Chile é um país ainda dividido do ponto de vista político e social. Crê que o sentimento de união que se viu durante o resgate dos mineiros vá permanecer?

Infelizmente, não. São episódios altamente emocionais que provocam uma unidade provisória. Uma vez terminados, os países voltam às suas rotinas. Não creio que deste saia uma grande unidade política nacional. Acho que a direita tem que ver como vai governar o país, porque a Concertação o fez muito bem durante anos. Se querem mostrar algo novo, terão que ser convincentes. Espetáculos emocionais não darão uma unidade ao Chile. Este é um país cujo povo tem maturidade política e razão. Simpatia e emoção são importantes, mas a tradição das estruturas políticas é ainda mais forte. O momento atual é ótimo para Piñera, foi um lucky strike, um lance de sorte, mas não é um capital para toda a vida.

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