Segredos de uma família americana assustada

Siri Hustvedt, mulher de Paul Auster, fala da neurose que afeta os EUA de Obama

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Quando Desilusões de Um Americano (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 368 págs, R$ 49) foi lançado há dois anos nos EUA, o jornal Washington Post publicou uma resenha elogiosa, mas contida, que dizia mais ou menos o seguinte: o livro era difícil de resumir - e de recomendar. A justificativa: sua trama é um tanto intrincada, fala-se demais da teorias psicanalíticas e o narrador sofre de anedonia, ou seja, de uma certa incapacidade de sentir prazer ou alegria. É verdade, mas são essas justamente as razões para se ler Desilusões de Um Americano numa época em que muitos sofrem de apatia e enfrentam problemas neurológicos sem diagnóstico preciso, como a autora, que se descobriu portadora de um distúrbio grave após sofrer uma convulsão numa homenagem a seu pai, figura que inspirou a realização do livro, sobre o qual Siri Hustvedt conversou com o Estado por telefone, de Nova York.Foi em 2006 que Siri, mulher do escritor Paul Auster, passou pela terrível experiência. Seus braços perderam a força, suas pernas tremeram, mas ela continuou seu discurso como se tivesse incorporado uma segunda pessoa, um orador calmo e seguro. Assustada, Siri foi buscar apoio num grupo formado por psicanalistas e neurologistas que estudam fenômenos como esse. Ainda não encontrou resposta para seus ataques, que se repetiram após o incidente de quatro anos atrás, mas sua experiência é contada no livro The Shaking Woman, a History of My Nerves, que será lançado em março nos EUA e no Brasil apenas em 2011 pela editora Companhia das Letras, que já publicou aqui outros dois livros seus, O Que Eu Amava e O Encantamento de Lily Dahl.O pai de Siri, Lloyd Hustvedt, foi uma presença forte na vida da escritora. Crítico e professor de literatura, foi ele quem apresentou à filha os autores noruegueses de sua predileção, de Henrik Ibsen a Ole Rolvaag, passando por Knut Hamsun. Ao morrer, legou à família um volumoso caderno de memórias em que relatava sua chegada aos EUA em plena época da Grande Depressão, sua luta como combatente na 2ª Guerra e, provavelmente, o segredo de família que motivou Siri a recriar ficcionalmente uma história de paixão adúltera em Desilusões de Um Americano. Ela começa quando o solitário psicanalista Erik Davidsen, divorciado, resolve investigar com a irmã Inga, ensaísta e professora de filosofia, quem é a misteriosa mulher de uma carta que surge dos guardados do pai, um imigrante norueguês de origem rural morto em Minnesota.Rastrear a vida alheia pode resultar na investigação da própria vida, como acabam concluindo os irmãos Erik e Inga. No fundo, pouco importa o segredo familiar. Ele explica apenas parcialmente o presente. Diz mais respeito ao passado de uma vida difícil no interior de Minnesota nos anos da Grande Depressão e de uma passagem traumática como combatente no sudeste da Ásia na 2ª Guerra. O que está por trás desses segredos é que as histórias familiares acabam invariavelmente se repetindo, como se houvesse um DNA dos dramas e tragédias. Foi isso que levou Siri Hustvedt a escrever o livro e investigar sua estranha ligação com o fantasma da figura paterna. Após frequentar palestras sobre neurociência no Instituto Psicanalítico de Nova York, ela se inscreveu como voluntária para ensinar escrita literária a pacientes de uma clínica de Nova York.Siri diz que a experiência foi riquíssima. Acabou aprendendo muito mais que ensinando. É mais ou menos o que acontece com o psicanalista Erik e seus pacientes no livro. Pela segunda vez em quatro romances - a primeira foi em O Que Eu Amei - a escritora assume o papel de um homem para narrar uma história. Se, em O Que Eu Amei, é um historiador de arte que descobre a pintura extraordinária de um artista desconhecido do qual fica amigo (Siri também é crítica de arte), em Desilusões de Um Americano ela encara o desafio de pensar como um homem e até imaginar como ele se alivia sexualmente quando Miranda, a designer negra por quem está apaixonado, não está por perto."Como ocupei o papel de guardiã das memórias de meu pai, que me autorizou a usar seus escritos antes de morrer, senti que teria de me colocar em outro lugar para ter um certo distanciamento", justifica Siri, que optou por ser um narrador masculino para entender melhor a relação de identidade e diferença entre pai e filho. "Os homens têm mais identificação com a figura paterna e o fato de eu ter escolhido um psicanalista como protagonista está muito mais ligado à possibilidade de ver as coisas de uma maneira racional do que a um simples capricho formal".De fato, as personagens femininas são acossadas por pesadelos que não deixam muito espaço para o uso da razão. Miranda, que aluga a parte de baixo da casa do psicanalista Erik, ainda está ligada de modo patológico ao ex-marido fotógrafo, um psicopata que ameaça os dois, a ex-companheira e o senhorio psicanalista. Sua irmã Inga, traumatizada pela lembrança dos atos terroristas do 11 de setembro, tenta superar a morte do marido e enfrentar os problemas com a filha adolescente, mas é assediada por uma jornalista inescrupulosa que quer escancarar a vida íntima do falecido escritor e roteirista. Em síntese, as personagens femininas de Siri agem mais por instinto que pela razão. E ela confessa que, apesar de se identificar com a figura de Inga, assume ser Erik seu modelo. Como ele, a escritora é meticulosa e tem uma fé inabalável na psiquiatria, o que fez com que a crítica do Guardian, Jane Smiley, classificasse seu narrador de "ingênuo". Como se vê, a sobreposição de papeis, ainda que involuntária, acabou provocando uma confusão de identidades entre personagem e criador desfavorável para Siri."Essa tensão entre norte-americanos e imigrantes, que me interessava no começo, foi mudando a ponto de exigir que eu elegesse outra região que não fosse Minnesota para contar a história", justifica a escritora, explicando que escolheu Nova York porque a experiência traumática passada pelos familiares imigrantes do psicanalista na Grande Depressão se repete no presente com a crise econômica pela qual passa os EUA e o mundo.Eleitora de Barack Obama, Siri não se mostra otimista com a atual situação de seu país. Considera que, apesar dos esforços do presidente, seus opositores forçam a barra para alimentar a indústria bélica e atravessar os projetos dos democratas. Como seus pais imigrantes vieram da Europa e tiveram um começo difícil, Siri foi criada numa família de poupadores, que se preocupava com o futuro. "A direita americana é truculenta e cheia de vícios, não entende a proposta de Obama mudar o país por meio de uma alteração radical no comportamento do americano médio, o que inclui conter o consumo desenfreado e o desperdício". Manias, aliás, do protagonista milionário e esbanjador do filme de Wayne Wang, O Preço da Fantasia, para o qual Siri fez o roteiro com o marido Paul Auster. A escritora prefere esquecer a experiência. "Foi frustrante."

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