Tese sem base científica provoca confusão

Hipótese contrária ao consenso médico divulgada pela mídia canadense mostra como as redes sociais podem pressionar médicos e gestores públicos

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Por Alexandre Gonçalves e Karina Toledo
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A esclerose múltipla não seria um problema do sistema imunológico, mas uma doença causada por anormalidades nas veias que irrigam o cérebro e a medula espinhal. A hipótese, sugerida em 2008 pelo cirurgião italiano Paolo Zamboni, contraria o consenso médico e não fez muito sucesso mundo afora. Com poucas e barulhentas exceções.No Canadá, a mídia relatou resultados quase milagrosos da cirurgia inspirada na teoria de Zamboni em que o médico alarga mecanicamente as veias para corrigir a suposta insuficiência venosa que causaria a doença. A técnica recebeu o sugestivo nome de "procedimento de liberação". As mídias sociais ecoaram elogios à terapia alternativa.Em dois anos, surgiram mais de 500 páginas, eventos e grupos no Facebook para promover o tratamento vascular de Zamboni, mobilizando dezenas de milhares de canadenses. A onda virtual paralisou médicos, gestores públicos e até líderes de associações de pacientes.Doentes e suas famílias exigiam que o governo permitisse a realização do procedimento no país. Chegaram a solicitar sua inclusão no rol dos serviços cobertos pelo sistema público.Médicos e gestores, apoiados por líderes de algumas associações de pacientes, argumentaram que a demanda não estava baseada em evidências científicas. Apontavam que toda a celeuma havia nascido de um trabalho menor, que analisou 65 doentes submetidos ao tratamento alternativo, sem qualquer comparação com um grupo controle.A resposta foi violenta. Os opositores do "procedimento de liberação" foram acusados de conluio com a indústria farmacêutica, que lucraria com a proibição do tratamento cirúrgico. Os pacientes exigiram a realização de testes clínicos - financiados com dinheiro público - para comprovar a eficácia da terapia. A discussão se arrasta até hoje.Há um mês, o imbróglio mereceu um artigo na Nature. Os autores, liderados por Roger Chafe, diretor de pesquisa pediátrica da Memorial University of Newfoundland, sublinharam a necessidade de dedicar esforços para "melhorar o conhecimento científico do povo, dos políticos e da mídia". Eles recordam que é preciso "criar empatia com um público que não é mais deferente aos especialistas".Também argumentam que os cientistas devem ingressar nas novas redes sociais, "ferramentas mais efetivas de comunicação" que os tradicionais relatórios e notas para a imprensa.No Brasil, já há iniciativas nesse sentido. O Hospital Israelita Albert Einstein, por exemplo, criou o cargo de "especialista em mídias digitais" com o objetivo de se consolidar como uma fonte segura de informação sobre saúde na internet. "Temos uma interação online com os pacientes pelo Twitter, Facebook e blog. Não chega a ser uma consulta virtual, mas damos as primeiras diretrizes, indicamos profissionais e eu dou o suporte do ponto de vista médico", diz a intensivista Mariana de Oliveira.Risco. O diretor do Centro Cochrane do Brasil, Álvaro Nagib Atallah, afirma que médicos e pacientes são "amadores" no negócio de influenciar as mídias sociais e a opinião pública. "As empresas farmacêuticas têm um controle muito maior sobre esse processo", aponta. "Elas tentam pautar a mídia e gerar comoção. Dessa forma, decisões sobre políticas de saúde tornam-se mais emocionais do que racionais."Para responder se uma terapia é realmente eficaz, a Cochrane compara centenas de estudos científicos. Depois, publica um artigo com a soma dos resultados. Fornece, assim, subsídios para decisões baseadas em evidências científicas robustas e não na última moda da rede. "Se não tomamos cuidado, deixamos de investir em coisas que funcionam para apostar em novidades mais caras e de eficácia duvidosa", diz Atallah.

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