Uma amizade que nasce da escrita

A prosa precisa e inteligente do colombiano Héctor Abad Faciolince conquista a cumplicidade de um colega de ofício

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Foto do author Mario Vargas Llosa
Por Mario Vargas Llosa e EL PAIS
Atualização:

Isso já me ocorreu há alguns anos, no caso de Javier Cercas e agora de novo com Héctor Abad Faciolince. Quando li o extraordinário romance de Javier, Soldados de Salamina (editora Francis, em português), não só fui tomado por aquela felicidade e gratidão que sempre sentimos quando lemos um belo livro, mas também por uma necessidade urgente de conhecê-lo, apertar sua mão e lhe agradecer pessoalmente. Pouco tempo depois, graças a Juan Cruz, uma pessoa cujo mérito é estar sempre onde é necessário, numa estranha noite em que Madri estava deserta, como que esperando a hecatombe nuclear, conheci Javier Cercas, num restaurante repleto de fantasmas. Imediatamente descobri que era uma pessoa tão magnífica quanto o escritor e que sempre seríamos amigos.Raras vezes sinto essa necessidade urgente de conhecer pessoalmente autores de livros que me comovem e me maravilham. Tive tremendas decepções a respeito e, de maneira geral, acho preferível ficar com a imagem ideal de um escritor que admiro, em vez de arriscar-me a compará-la com a real. Exceto quando estou realmente convencido de que vale a pena a tentativa.Quando li El Olvido que Seremos (Editora Seix Barral, em espanhol), a mais apaixonante experiência de leitor dos meus últimos anos, quis ardentemente que os deuses ou o azar me concedessem o privilégio de conhecer Héctor Abad Faciolince, para poder dizer-lhe de viva voz o quanto lhe era agradecido.É muito difícil sintetizar esse romance porque, como toda obra-prima, ele é muitas coisas ao mesmo tempo. Dizer que se trata de uma lembrança desgarrada da família e do pai do autor - assassinado por um sequaz - seria correto, mas ínfimo e infinitesimal, por que o livro também é uma imersão aterradora no inferno da violência política colombiana, na vida e na alma da cidade de Medellín, nos ritos, insignificâncias, intimidades e grandezas de uma família, um testemunho delicado e sutil do amor filial. É uma história real, mas, ao mesmo tempo, é uma ficção magnífica, pela maneira como está escrita e construída, além de ser um dos mais eloquentes arrazoados que já se escreveu até hoje contra o terror como instrumento da ação política.O livro é pungente, mas jamais truculento, escrito numa prosa que em nenhum momento exagera na efusão dos sentimentos; uma prosa precisa, clara, inteligente, culta, que manipula com destreza e sem falhas o ânimo do leitor, ocultando dele alguns dados, distraindo-o, para incitar sua curiosidade e expectativa, obrigando-o a participar da tarefa criativa, lado a lado com o escritor.TRISTEZA E ESPANTONo livro, o autor aborda duas mortes - a da irmã e a do pai, uma por doença e a outra por conta da selvageria política -, e na descrição dessas duas mortes há mais silêncios do que elocuções, um pudor elegante que curiosamente multiplica a tristeza e o espanto com que ambas as tragédias são vividas pelo leitor fascinado.Contrariamente ao que pode parecer, El Olvido que Seremos não é um livro que desmoraliza, apesar da presença devastadora do sofrimento, da nostalgia e da morte. Pelo contrário, como sempre ocorre com obras de arte perfeitas, é um livro cuja beleza formal, a qualidade da expressão, a lucidez das reflexões, a graça e a finura com que é retratada essa família tão próxima e cordial, que até gostaríamos que fosse nossa, se combinam para torná-lo um livro que levanta o ânimo, mostrando que, apesar das mais vis e cruéis experiências, a sensibilidade e a imaginação de um criador generoso e inspirado podem se unir para defender a vida e mostrar que além da dor e da frustração, também existem felicidade, amor, ideais, sentimentos elevados, ternura, piedade, fraternidade e gargalhadas.Os deuses ou o azar foram benevolentes comigo e organizaram as coisas de maneira que no último festival literário do Hay, em Cartagena, e graças à intermediação do onipresente Juan Cruz, conheci pessoalmente Héctor Abad Faciolince. Naturalmente, a pessoa estava à altura do escritor. Culto, simpático, generoso. Conversar com ele foi tão prazeroso e enriquecedor quanto ler o seu livro. Depois de dez minutos de conversa, no Clube de Pesca de Cartagena, sob uma lua cheia de cartão postal, algumas silhuetas de roedores perambulando pelo embarcadouro, e diante de um suculento arroz com côco, soube que ele seria um bom amigo e companheiro para sempre e que até o fim dos nossos dias um dos nossos temas de discussão seria Juan Carlos Onetti, autor que aprecio e que ele acha tedioso. Espero ter tempo e muitos argumentos para convencê-lo ainda a reler textos como "El Infierno tan Temido", ou A Vida Breve (Editora Planeta) e descobrir como o mundo de Onetti está próximo do seu, pela autenticidade moral, a maestria técnica que ambos revelam e a impecável radiografia da América Latina que, sem ser esse o objetivo, ambos traçaram em suas ficções. UM POEMA ESCRITO À MÃONas três horas e meia de voo de Cartagena a Lima, li o último livro de Hector Abad Faciolince, Traiciones de la Memoria (editora Santillana, em espanhol). São três histórias autobiográficas, acompanhadas de fotografias de lugares, objetos e pessoas que ilustram e completam a narrativa. A primeira, Un Poema en el Bolsillo, é de longe a melhor e a mais longa e, de certa maneira, um complemento indispensável de El Olvido que Seremos. No bolso do pai assassinado em Medellín, o jovem Abad Faciolince encontrou um poema escrito à mão que se inicia com o verso: "Ya somos el olvido que seremos". De início, achou que era de Borges. Confirmar a identidade precisa do autor custou-lhe uma aventura de vários anos, feita de viagens, encontros, pesquisas bibliográficas, entrevistas, busca de pistas falsas, uma peripécia realmente borgiana de erudição e jogo, uma pesquisa que parece não ter sido real, mas fantasiada por um escritor "podrido de literatura" (como disse Borges, um dia) de bom humor, malícia e cheia de imaginação.De início, essa investigação parece ter sido um esforço pessoal e privado, uma maneira de o filho, destroçado pela morte terrível do pai, conservar viva a sua lembrança e testemunhar o seu amor. Mas, pouco a pouco, à medida que a averiguação vai confrontando opiniões de professores, críticos, escritores, amigos, e o narrador vacila, aturdido diante das versões contraditórias, a busca traz à luz temas mais permanentes: a identidade da obra literária e a relação que existe, no momento de julgar a qualidade artística de um texto, entre essa qualidade e o nome e o prestígio do autor. Especialistas e acadêmicos respeitados declaram, com desdém, que o poema não é mais do que uma imitação tosca. Mas, imediatamente, uma circunstância inesperada, um intruso que surge repentinamente, e todas as certezas obtidas são colocadas em dúvida, até a prova rotunda e inequívoca: o poema, de fato, é de Borges. Mas o seu valor literário mudava, se elevando ou decaindo em originalidade e importância, à medida que, naquela busca, a possibilidade de Borges ser de fato o seu autor aumentava ou diminuía.A leitura do texto é fascinante, sobretudo quando a sensação é de que, embora tudo o que é narrado ali seja correto, graças à magia com que a trama é desenvolvida, ele se transforma numa bela ficção.Essa história e as outras duas - a do jovem escritor meio morto de fome, tentando sobreviver em Torino, e o ensaio sobre os "ex-futuros" - tiveram a virtude de fazer-me esquecer, durante três horas e meia, que estava a dez mil metros de altura, voando a oitocentos quilômetros por hora, sobre os Andes e a Amazônia, uma sensação que sempre me enche de pavor e claustrofobia. Com certeza, passarei o resto da vida contraindo dívidas com esse escritor colombiano.

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