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Uma guerra sem lágrimas

Por Adriana Carranca
Atualização:

Foi das cenas mais marcantes que testemunhei em uma guerra, talvez porque estivesse visível apenas no rosto de Nyapal Nyechoat. Não havia sangue, nem a fumaça negra de explosões. Não se ouvia no ar o estampido de bombas ou artilharia, nem choro. Eu a encontrei em silêncio, de olhos fechados, sentada imóvel em uma cadeira de plástico ao lado do corpo da filha enrolado em um velho cobertor. Morrera havia dois dias, de desnutrição, e desde então a mãe perambulava entre barracas buscando um pedaço de terra onde pudesse enterrar a menina, mas o campo já não tinha espaço para nada - nem para os mortos.  Era difícil entender por que Nyapal não chorava. Ela parecia indiferente, embora o rosto estivesse contraído. Mais tarde, um médico explicou que o organismo desidratado reage tentando armazenar todo o líquido do corpo e deixa de produzir lágrimas - Nyapal chorava por dentro.  O campo era um depósito de esgoto a céu aberto, que secava sob o sol equatorial do Sudão do Sul. Milhares de sul-sudaneses haviam procurado esconderijo na base da ONU, fugindo de soldados do presidente Salva Kiir, da etnia dinka. Nyapal e os demais eram da etnia nuer, como o vice-presidente deposto, Riek Machar. Quando passam à idade adulta, os homens das tribos nuer têm marcadas na testa, com uma navalha, seis linhas horizontais paralelas. É um rito de iniciação. É também uma sentença de morte, uma vez que as cicatrizes denunciam sua origem. Conheci no mesmo campo os irmãos Koal Ter e Gatluak Duong, sobreviventes de um massacre em Gudele, na periferia de Juba. Em dezembro de 2013, o presidente Kiir mandou prender políticos ligados ao vice e desarmar os soldados da etnia do opositor, alegando tentativa de golpe. Os nuer desertaram. Em três dias, pelos menos 500 foram mortos. Machar fugiu para o norte com os rebeldes e tomou o controle de cidades-chave predominantemente nuer. Quando cheguei ao Sudão do Sul, três meses depois, cruzando 298 quilômetros de estrada desde Adjumani, em Uganda, famílias venciam o trajeto a pé, caminhando na direção contrária ao carro da equipe de Médicos Sem Fronteiras que eu acompanhava. Os rebeldes tinham avançado para Malakal, o centro petrolífero do Alto do Nilo, e os confrontos escalaram para a guerra civil, com milhares de mortos e mais de um milhão de refugiados.  Mais de 800 mil estavam deslocados dentro do país, escondidos no mato ou em bases da ONU, como a de Juba. Em entrevista na capital, o secretário-geral de MSF, Jérôme Oberreit, já criticava as condições sub-humanas no campo, propícias a surtos de doenças, além da fragilidade da segurança e a lentidão da resposta da ONU. Um ano depois, questionado sobre qual era a mais grave crise humana de então, em outra entrevista durante visita ao Brasil, Oberreit não hesitou: definitivamente, Sudão do Sul.  Mais um ano passou e 10 mil mortos somaram-se ao saldo da guerra. Em fevereiro, outra base da ONU onde 47 mil deslocados se aglomeram, em Malakal, foi atacada. Dezenove pessoas morreram, entre elas dois agentes de MSF.  Ontem, a ONU divulgou relatório em que acusa os dois lados do conflito de “violência sistemática contra civis”, mas aponta as forças leais ao presidente Salva Kiir como principais responsáveis pelos crimes. A ONU diz ter evidências de que os soldados do governo estão usando o estupro de mulheres e crianças, de até seis anos, como arma para punir e aterrorizar a população - elas são entregues como “pagamento” a jovens recrutas. O estudo fala em milhares de casos, além de assassinatos em massa, pessoas queimadas vivas, enforcadas em árvores, cortadas com facões, sufocadas. Estima-se em 50 mil os mortos desde 2013, mas o número é claramente subestimado, porque não se morre somente de tiros, explosões e outros ataques violentos no Sudão do Sul, mas da miséria e do isolamento que a guerra produz. A maioria dos sul-sudaneses está sucumbindo lentamente até a morte por surtos de doenças, fome e desidratação, como a filha de Nyapal Nyechoat - a essa altura, possivelmente, ela própria.

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