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Un tropezón

Colunista comenta o caso do salto agulha, do tombo feio e da doce compensação.

Por Ivan Lessa
Atualização:

O mundo é perigoso. Vivemos cercados de armadilhas. Às vezes, somos nós mesmos quem as armamos. Outras, nosso próximo nos cerca. Poucas vezes em minha vida defendi a grande indústria. Acho que nem mesmo as indústrias média e pequena. Tudo tem seu limite. Isso pelo que a fabricante de sapatos Dolcis passou foi uma tremenda injustiça. Acho eu. Sim, eu sei, primeiro devemos pensar nos pobres, na climatização global, na crise inflacionária mundial, nos pequenos (e enormes também) animais em vias de extinção. Mas há que haver uma hora de torcermos pelo capital e seus empreiteiros e há que haver uma hora para se atirar a língua para os consumidores. Principalmente quando esses consumidores forem algo por sobre os chatos. Não de galochas, mas de salto alto. Logo, pois, e portanto, uma consumidora. Uma senhora ou senhorita. E vou logo dando o nome: Sophie King. E a cidade que habita: Manchester. Pela foto que vi no jornal, Sophie não é de se jogar fora. Loirinha, 20 anos, sorriso encantador. O que é que ela fez, para que eu a deteste por, ao menos, 16 horas de um dia na minha vida? O que houve foi simples. Primeiro, Sophie King, que, ao menos (os ingleses me entendem), não é de Manchester. Ela nasceu e mora na cidade de Knutsford, no condado de Cheshire, aquele mesmo do gato de Lewis Carroll. Sophie King é alta e bem posta, garante ela mesmo. Tem quase 1m80 de altura e, ainda é ela quem o diz, raramente usa saltos altos. Sem maiores explicações, Sophie, em seu depoimento à Justiça (já chegaremos lá), adiantou que prefere sapatos rasos como o pensamento das louras de Cheshire e Manchester. Sophie King comprou por perto de US$ 70 um belo par de sapatos de salto agulha da marca Dolcis em uma sapataria cujo nome deverá se quedar no anonimato por motivos jurídicos. Estava muito satisfeita com a compra. Salto de duas polegadas e meia, tiras coloridas. (Hmm.) Sabe-se lá por que motivo, Sophie foi parar em Manchester, onde, é de se supor, foi visitar amigos. Até aí, tudo bem. Alguém tem que ter amigos em Manchester. Numa bela noite enluarada, supõe-se de novo, pois a vida é toda suposição, saiu com eles para comemorar a reunião em diversos bares da aprazível (hmm de novo) cidade. O objetiva era derramar goela abaixo um determinado número de copos, o que, em Manchester, é "determinado" para valer, companheiros. Beber em Manchester é cutucar tigre com vara curta. Partindo para a beberagem, ainda sóbria como um juiz (já chego lá), pegou um bonde mancuniano com os amigos mancunianos. Deixo para que, dublada, a própria moça conte sua triste saga, segundo relato da imprensa: "Eu vinha andando pela plataforma do bonde quando o salto quebrou e eu levei um tombo. Doeu, mas eu não queria estragar a noite de ninguém, portanto seguimos em frente e fomos parar num bar. Depois de alguns drinques, passei a me sentir melhor. Mas a primeira coisa que me lembro, depois, foi acordar numa ambulância". Não teve por onde. De nada adiantaram os coquetéis coloridos mancunianos com guarda-chuvinha dentro (especulo literariamente). Sophie quebrou o tornozelo. Teve que ser operada e o pé engessado. Em conseqüência, Sophie foi obrigada a parar de praticar esportes e a abandonar seu emprego de férias como garçonete. Então é isso. Sophie deixara Cheshire para ir trabalhar servindo mesa em Manchester? A imprensa não esclarece. Vou tateando e tentando adivinhar. Mas vou de salto baixo. O caso adquiriu proporções dreyfusianas e, até certo ponto, kafkianas também. Arrastou-se, como Sophie por uns tempos, por mais de três anos até chegar a um tribunal. Que resolveu a questão dando a Sophie King uma bela compensação pelo tombo no trem: perto de US$ 14 mil. Compensação de salto bem alto, digamos. Michael Hardacre, advogado da infeliz, ou quiçá felicíssima, jovem, assim explicou e resumiu a questão para a imprensa: "Segundo as leis britânicas, ela estava sob a proteção da legislação que cobre a venda de bens e produtos. Tratava-se, pois, de um caso simples e direto". O nobre colega lá deles avisou ainda à população de uma maneira geral que todos que se encontrarem em situações semelhante que cuidem de não se desabarem do alto de seus sapatos depois de seis meses. Se é para cair, que o seja o mais próximo possível da data da compra. A fábrica de sapatos Dolcis faliu em janeiro. A companhia Alexon, que herdou a sapataria, e a disputa jurídica, nada teve a comentar. É de se supor que a falência nada tenha a ver com a queda em Manchester de Sophie King. Moçoilas que se prontificam a partirem para umas birinaites do alto de saltos tipo agulha: cuidado, muito cuidado, que o tombo pode ser feio. Ainda que, alguns anos depois, venha uma - inevitável a palavra - doce (como em "dolci", num tão sabendo?) compensação. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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