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Volta, Bia

Da faxina eu dou conta, Bia. O problema são as plantas, saudosas de seus carinhos

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Vamos todos sair melhorados dessa pandemia (acabo de ouvir na TV), robustecidos e retemperados pelos sacrifícios a que nos condenou o coronavírus. Não é a primeira vez que o anúncio otimista chega à toca onde me enfurnei há mais de um mês, e na qual estou, desde então, entregue à minha própria e exclusiva companhia, que no momento não recomendaria a ninguém. 

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A crer no que ouço e leio, parece que estaremos todos convertidos em gente de melhor qualidade quando finalmente cessar nosso confinamento – e, segundo me garantiram, não é só a Poliana que está dizendo. Veremos. Em matéria de Brasil, confesso, ando escaldado. Foi-se o tempo em que nosso país era para mim como um xaxado, dois para frente, um para trás, com as recuetas de praxe, mas sempre em direção ao tal futuro. Ultimamente, porém, o que vejo é marcha à ré apenas. Vamos de fasto, como antigamente se dizia.

Para lembrar o Otto Lara Resende em momento de exasperação cívica: vontade de trancar matrícula de brasileiro. E olha que o Otto foi poupado de ver presidente da República enfiando palavrão numa fala desconexa em pleno Palácio do Planalto, diante das câmeras e à frente de seu desconchavado ministério, no qual havia ministro sem sapato e ministro sem gramática, ou gabando os feitos galantes de um filho, mais um, meu Deus!, que, por não ter até então entrado na história, deve ser o Zero Km, na rabeira de três outros zeros à esquerda, ou melhor, à extrema-direita. 

Só dizendo como aquela sábia senhora: melhor ouvir isto que ser surdo.  * Mas voltemos ao começo da conversa, que era a respeito dos ganhos que haveremos de ostentar quando emergirmos de nossas furnas. De minha parte, não prometo nenhuma metamorfose grandiosa, ou mesmo mediana. Talvez tenha acrescentado discretos avanços à minha esquecível carreira de mestre-cuca, empacada desde o tempo já distante em que arriscava um quindim de coco, ou uma fraude culinária, aplicada por um amigo, não por acaso denominada Falsa Moqueca. 

Volto a dizer que, ao contemplar minhas produções no fogão, não consigo ver delícias, apenas proteínas e carboidratos, com a sensaboria daquelas pílulas que mantinham vivos os primeiros astronautas. Tudo, ou quase tudo, nem preciso dizer, confeccionado com matéria-prima que me lembra o espião que, no filme, veio do frio – e põe frio nisso: das gélidas entranhas do meu congelador. Só espero não chegar ao extremo daquele camarada que, de seu esconderijo, me confidenciou a decisão de não arredar o pé de casa, mesmo depois do ansiado liberou-geral, enquanto não der cabo das provisões com que atulhou a sua geladeira. Uma espécie de expiação, talvez, pela ofegante, estabanada urgência com que abarrotou sua despensa, mal começou a quarentena. 

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O mesmo cidadão me fez saber também que anda cogitando nunca mais dispensar o uso de máscara – não mais para deter a invasão do vírus, mas para ocultar o espetáculo das ruguinhas paralelas que de uns anos para cá deram ao entorno de seus lábios a aparência de um código de barras. Anda pensando, ainda, em máscara comprida o bastante para esconder a balouçante pelanca que o tempo pendurou sob seu queixo. A esse amigo devo, aliás, a informação de que tem nome essa inexorável flacidez dos tecidos do queixo e do pescoço: perigalho. (De onde veio essa esquisitice verbal? Do espanhol, afirma Rafael Bluteau, estudioso inglês que foi autoridade em língua portuguesa. Não, do português, pontifica o espanhol Ferrán Corominas. Parece que ninguém quer o perigalho em seus domínios idiomáticos. Para dirimir o diferendo, como gostava de dizer o Antonio Houaiss, só mesmo consultando o Pasquale Cipro Neto, que veio do italiano. Uma coisa é certa: pouco importando de onde venha, o perigalho vem para ficar.) * Onde estávamos? Ah, sim, no saldo pós-pandemia. Se chegar lá, insisto, não terei muito a apresentar. (Estou exagerando na modéstia, departamento em que ninguém no condomínio me supera.) Terei aprendido, nestas intermináveis semanas, a montar uma bicicleta ergométrica, feito que chega a ser notável em se tratando de consumidor que desde sempre apanha de manuais de instrução, qualquer um, inclusive o do barbeador elétrico. Falta montar um aspirador de pó que jaz ainda na embalagem, e que nas minhas mãos haverá de corresponder, espero, a uma aspiração específica, a do pó acumulado em minha caótica biblioteca. 

Já montado, aparentemente com êxito, mas intocado desde então, me espera também um instrumento de faxina, adquirido para assegurar uma limpeza que não se faça ao preço de minha castigada coluna vertebral – e aqui chego ao que talvez seja, para este quarentenário (sim, existe o substantivo) o maior problema na reclusão forçada: manter imaculado um apartamento cujos metros quadrados de repente parecem excessivos. Jamais comemorei com tanta convicção o Dia da Empregada Doméstica, transcorrido nesta segunda-feira, dia 27. De minha clausura, ergui um brinde à Bia, que há anos me garante a limpeza e a ordem do domicílio, e que está por ora em regime de licença remunerada. 

Que falta ela faz, e não apenas ao dono da casa, habituado a vê-la circular, silenciosa, com um perfil afilado como o mapa do Chile. A Bia faz falta também às plantas, cada vez mais numerosas, que ao longo dos anos foi entronizando no parapeito da área de serviço e de uma janela da sala. Para não falar daquilo que, de tão bem cuidado, já não caberia aqui: um pinheirinho que nas suas mãos cresceu ao ponto de requerer espaço aberto, e que hoje, no jardim do prédio, já passa dos 2 metros de altura. Devo também à Bia ter podido saborear três pequenos e deliciosos abacaxis cultivados na área de serviço. Abacaxi, quando não o seja em sentido figurado, é o que há de bom.

Tomei para mim a obrigação de aguar regularmente as plantas, mas por mais que faça não mereci ainda um reconhecimento como aquele que a Bia tantas vezes me chamou para observar: “O senhor tá vendo como essa flor agradeceu?”. Volta, Bia. Já nem é por mim que peço, é pelas plantas, impacientes para agradecer a quem delas sabe cuidar como ninguém. 

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