Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A emergência permanente dos yanomamis

Dois anos após a decretação da emergência em saúde pública na terra yanomami, a realidade indígena e a baixa transparência nos dados sobre mortes desabonam o triunfalismo governista

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
3 min de leitura

No último dia 20 de janeiro, data em que se completaram dois anos da decretação da emergência em saúde pública na terra yanomami, o governo do presidente Lula da Silva não hesitou em divulgar mais um de seus habituais balanços triunfalistas. “Ações federais garantem proteção, cidadania e preservação na maior terra indígena do país”, informou uma notícia publicada no site oficial do governo. “Operação Yanomami derruba garimpo, ergue infraestrutura e salva vidas”, disse outra, divulgada minutos depois. A TV oficial, por sua vez, preparou “reportagem”, em tom de resistência vitoriosa, sobre a força-tarefa destinada a expulsar garimpeiros invasores e livrar os indígenas dos crimes ambientais, da desnutrição, de doenças e mortes. Mais um pouco de imodéstia governamental e o Brasil assistiria, espantado, que o maior e mais populoso território indígena do País teria se livrado da profunda tragédia humanitária que abateu as condições de vida dos yanomamis. Engano.

Apesar de alguns bons números divulgados pelo governo, a prudência não só desabona a euforia, como a situação ainda parece bastante grave. De fato, houve uma significativa redução nas áreas já impactadas pelo garimpo (91%), redução relevante nas novas áreas de garimpo (95%) e cálculo de um prejuízo imposto à rede criminosa do garimpo ilegal na ordem de R$ 267 milhões, segundo os dados oficiais. Quase triplicou o número de profissionais de saúde no território entre 2023 e 2024 (de 690 no início do governo para 1.759 no fim do ano passado), novas unidades básicas de saúde indígena foram construídas, aumentou-se a aplicação de doses de vacinas e a realização de exames, além de um esforço por melhoria na nutrição e no combate à malária. Há uma pletora de outros números difundidos pelo governo, entre os quais mais de 3.500 operações de segurança e dezenas de quilos de ouro e centenas de quilos de mercúrio confiscados ao longo do último ano.

Falta, porém, o mais relevante: números completos de 2024 referentes aos registros de mortes de indígenas. Esse foi justamente o calcanhar de aquiles do governo no balanço do primeiro ano das ações de emergência. Recorde-se que, em 2023, houve 363 mortes, número inaceitavelmente superior à quantidade de notificações de 2022, quando oficialmente morreram 343 indígenas. O governo creditou o aumento à subnotificação elevada na gestão anterior, de Jair Bolsonaro. Apesar da justificativa, e diante da inevitável conclusão de fracasso das ações no primeiro ano, o presidente Lula da Silva fez o que mais se espera do lulopetismo: recorreu ao palanque. Apontou culpados externos do passado, enviou equipe de ministros ao local, apresentou denúncias como se estivesse não no marco de um ano, mas iniciando a tarefa e fez promessas de redenção para o futuro próximo. Agora, no marco dos dois anos, o governo parece relutante em consolidar os números de 2024. O que se sabe, por ora, é que o número de mortes no território yanomami caiu 27% no primeiro semestre de 2024 ante o mesmo período de 2023. A queda foi maior nos óbitos por desnutrição e por infecção respiratória. Nas mortes por malária, a queda, em termos porcentuais, foi bem mais modesta.

Há perguntas inquietantes à espera de respostas mais firmes: quanto tempo há de durar uma emergência de saúde pública como a do povo yanomami? Por que as medidas adotadas até aqui, embora tenham aplacado a agonia a que os indígenas estão submetidos, parecem ainda longe de resolver o problema? É aceitável o número de mortes e adoecimentos depois de dois anos de ações supostamente intensas e organizadas, com diversos ministérios e órgãos públicos mobilizados? A retomada do controle da terra, reduzindo, por exemplo, os garimpos consolidados na região, é consistente o suficiente ou apenas um alívio temporário enquanto a força-tarefa está no local? Poderia haver balanço melhor do que o apresentado no aniversário da decretação da emergência? Pela baixíssima transparência nos dados, pela longevidade da emergência e pela sensação de que o garimpo ilegal pode voltar a dominar o território tão logo se encerre a força-tarefa, pode-se concluir: ainda há um enorme abismo separando o triunfalismo do governo e a realidade yanomami.