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Boris e o limite da desonestidade

O Partido Conservador precisará restaurar os valores institucionais pressionados até o limite pelo premiê

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Por Notas & Informações
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Em três anos como primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson desafiou as leis da gravidade política e atravessou uma sucessão de escândalos combinando carisma, contemporização, prevaricação e franca desfaçatez. Há um mês, sobreviveu a um voto de desconfiança no Parlamento, por causa de festas na sede do governo no auge da pandemia. A revelação de que havia indicado um colega para uma função disciplinar chave sabendo de alegações de assédio sexual foi a gota d’água. Em 36 horas excruciantes, dezenas de membros do governo, a começar pelos ministros das Finanças e da Saúde, renunciaram. “Temos razões para questionar a verdade e a integridade sobre aquilo que nos foi dito”, resumiu ao Parlamento o ministro demissionário da Saúde, Sajid Javid. “Temos de concluir que basta.” Johnson relutou, mas teve de concluir a mesma coisa, e renunciou.

Para o bem ou para o mal, o Brexit é o seu maior legado. Sua atuação nas grandes crises globais foi decisiva, fomentando o desenvolvimento das vacinas na pandemia e apoiando a Ucrânia. Mas o acúmulo de escândalos, e das mentiras para apaziguá-los, consumiu seu governo.

Johnson caiu por seu caráter amoral. Mas também subiu por ele. Se, quando eleito, conquistou a mais numerosa maioria parlamentar em décadas, foi pela capacidade de mobilizar as duas facções do Partido Conservador. Sua política de “ter o bolo e comê-lo”, como disse nas negociações pós-Brexit, fez com que prometesse de tudo a todos: a uns mais gastos e protecionismo, a outros menos impostos e mais livre mercado. O seu encanto se exauriu, mas essas contradições, e as dificuldades socioeconômicas precipitadas por elas, permanecem.

O Reino Unido tem a maior inflação e o crescimento mais baixo do G-7. A dívida pública está em alta e a libra, em baixa. O custo de vida espreme os britânicos. Escócia e Irlanda do Norte questionam sua integração na União. As relações com a Europa estão longe de normalizadas. O apoio ao Partido Conservador caiu e seu desempenho nas eleições, daqui a dois anos, está comprometido.

O próximo primeiro-ministro precisará da mesma energia de Johnson, mas com qualidades que lhe faltam: visão, coerência e, acima de tudo, a disposição de fazer escolhas duras, ainda que impopulares.

Mas, mais do que pragmatismo, o Partido Conservador precisará se mostrar capaz de restaurar os valores institucionais pressionados até o limite por Johnson. Mesmo nos estertores, ele chegou a flertar com um momento “Trump”, alegando, contra a ordem constitucional, um mandato direto do povo. Nos EUA, o Partido Republicano continua a inflamar humores populistas. No Reino Unido, o Partido Conservador aparentemente recuou. Nas palavras de Sajid Javid, “andar em uma corda bamba entre a lealdade e a integridade se tornou impossível”.

A moral da história nessa parábola de ascensão e queda é que, mesmo na era da “pós-verdade”, a desonestidade tem limite. Sem confiança, não há governo. Ao forçar a saída de Johnson, o Partido Conservador postulou a verdade de que o caráter é essencial para a política. Agora precisará prová-la.