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Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Em louvor de Cleonice Berardinelli

Evocando Fernando Pessoa, o iluminador percurso de minha companheira de ABL ‘foi claro em pensar e claro no sentir’

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Cleonice Berardinelli acaba de nos deixar, após longa vida dedicada com ressonância ao magistério universitário das Letras no Rio de Janeiro. Tinha o dom da leitura em viva voz da poesia. No seu falar, sabia modular a rima e o ritmo do poético corporificado no texto escrito. Dominava a hoje quase inexistente arte da declamação, que exercitou desde mocinha, como revelou no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em 2010.

Neste discurso, que presenciei como seu confrade, tive o privilégio de ouvir o encanto da modulação da sua voz na leitura de poemas que permearam a tessitura da sua densa e bela alocução.

Cleonice formou-se em letras neolatinas na Universidade de São Paulo (USP). Foi aluna de literatura portuguesa do eminente mestre lusitano Fidelino de Figueiredo. Anos depois, fui aluno na USP de literatura portuguesa de Antonio Soares Amora e Segismundo Spina, discípulos de Fidelino. Daí facetas compartilhadas de um tronco de formação comum e as afinidades de uma devoção ao tríptico Gil Vicente, Camões e Fernando Pessoa. Foi o que nos aproximou no convívio pessoal na ABL.

Gil Vicente (1465-1536) viveu no Portugal das transformações da expansão ultramarina lusitana. Neste ambiente, criou com espírito crítico o teatro em nossa língua. Valeu-se dos gêneros dramáticos tradicionais da cultura medieval englobados sob a designação geral de autos. Neles estão presentes o divino, o humano e o alegórico. Sua obra retém viva atualidade que alcança com eficácia o espectador, como Cleonice verificou muito jovem em representações de suas peças no teatro universitário. Trata-se de um teatro de tipos (o clérigo, o juiz, o velho...), que na simplificação dos seus traços desvenda a realidade pelo poder iluminador da literatura.

Cleonice, na apresentação do livro de 2012 sobre a obra de Gil Vicente, realça que, no longo convívio com o seu teatro, nele encontrou a coincidência com o “teatro do mundo”. Consagrou Gil como o padrinho de seu ensino de literatura portuguesa.

Cleonice me considerava “amigo em Gil Vicente”. Tinha em mente o meu primeiro livro, O Judeu em Gil Vicente (1963), que deu início aos meus caminhos de intelectual.

Estudei um tipo do teatro de Gil Vicente inspirado na significativa presença judaica no Portugal de sua época. Também apontei que se contrapôs ao antissemitismo religioso de clérigos. Cleonice estudou personagens femininos no teatro vicentino. Ambos os estudos exemplificam como o teatro de Gil coincide com o “teatro do mundo”.

Cleonice foi devota de Camões e dedicou-se ao estudo de sua lírica e de Os Lusíadas. Também sou modesto devoto de Camões. Daí resultou o opúsculo O problema dos valores n’Os Lusíadas (1965). Fui, assim, seu amigo em Camões.

Na abrangente camoniana de Cleonice, destaco o seu ensaio Os excursos do poeta n’Os Lusíadas. Nele, examina a voz própria do ser do Poeta. Estes excursos, que não caracterizam os modelos clássicos da Odisseia e da Eneida, expressam uma liberdade de juízo de Camões no confronto com os tempos contraditórios de “mudanças” e “enganos” nos quais se insere a sua epopeia. É um dos ingredientes que fazem de Os Lusíadas o único poema épico esteticamente realizado da modernidade.

A análise dos excursos do poeta converge com o que qualifiquei no meu ensaio como a dúvida existencial de Camões n’Os Lusíadas a respeito dos celebrados valores da expansão ultramarina lusitana. Uma dúvida baseada na sua experiência pessoal com as tormentas do mar e da guerra, com seus gravíssimos perigos que tornam “o caminho de vida nunca certo”. Os excursos são uma alta expressão poética do embate entre os valores e a realidade, que articulam a duradoura realidade do sentimento com o “desconcerto do mundo”.

Cleonice foi pioneira na sua devoção à obra de Pessoa. Destaco a primorosa edição de Mensagem (2014), o único volume de versos pessoalmente organizado e publicado por Pessoa, em 1934, assim como Os Lusíadas foi a única obra de Camões publicada em sua vida, em 1576.

Mensagem é um poema épico, com uma estrutura perfeita. Caracteriza-se por uma admirável estética de concisão, que dá conta da história de Portugal e de seu destino. Comporta por isso mesmo paralelo com Os Lusíadas. São dois extraordinários poemas épicos, de dois grandes poetas de Portugal, tendo quatro séculos de permeio.

Camões, pela qualidade única de seu fazer poético, “ressoa sempre como um eco de búzio nos ouvidos dos poetas de língua portuguesa”, como sublinhou Haroldo de Campos. Daí sua ressonância como inspiração e citação na poesia de língua portuguesa, como exemplifica a obra de Carlos Drummond de Andrade. É o que pode propiciar o que Harold Bloom denominou a ansiedade da influência.

Essa ansiedade é um componente de fertilização presente na feitura de Mensagem. Daí o mérito esclarecedor do ensaio de Cleonice Os Lusíadas e Mensagem – um jogo intertextual.

Para concluir sinteticamente, evocando Pessoa, o iluminador percurso de Cleonice “foi claro em pensar e claro no sentir”.

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PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS E DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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