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Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | ‘Estadão’ – 150 anos

A inconformidade com o ‘status quo’ é o que caracteriza o jornal nos 150 anos de sua existência

Foto do author Celso Lafer

A identidade pode ser compreendida como um conjunto de características que assinalam uma pessoa, uma instituição, uma geração. Tem uma dimensão coletiva quando provém de nexos de semelhança. Possui uma dimensão individual que é dada pelas diferenças. Valho-me dessa distinção para realçar que o Estadão não pode ser adequadamente avaliado pelos nexos de semelhança com outros órgãos de imprensa. Desde sua origem, caracteriza-se pela sua dimensão diferenciadora na vida da imprensa brasileira.

A memória, ensina Santo Agostinho, é a sede da alma. A memória, no entanto, por si só não gera a identidade. Desvenda-a no decorrer do tempo, como pontua David Hume.

A celebração dos 150 anos do Estadão é uma oportunidade para desvendar o porquê que, no correr de sua existência,se configurou a sua identidade, uma identidade que, pela ação conjunta da família Mesquita e de seus colaboradores, confere ao jornal uma auctoritas no cenário do espaço da palavra nacional.

A “ideia a realizar” que animou o projeto do jornal se configurou pela atuação de Julio Mesquita. Deve-se ao seu tirocínio de jornalista e ao seu tino de empreendedor ter implantado o jornalismo moderno no Brasil. Fez do Estadão uma perdurável publicação de importância nacional.

Ele investiu na obtenção de informação de qualidade. Empenhou-se num noticiário isento e não partidário. Reservou a firmeza das posições políticas do jornal aos editoriais para a eles conferir a institucionalidade não personalista do nome do jornal. São facetas que imprimiu ao durável DNA do Estadão. Resultam de sua vida e de sua obra, explicitadas por Jorge Caldeira nos quatro volumes de seu Júlio Mesquita e Seu Tempo (2015).

O capital simbólico de reputação do Estadão adensou-se com a atuação de Julio de Mesquita Filho, seu sucessor. Os seus caminhos, Roberto Salone deslindou na sua biografia que tive a satisfação de prefaciar.

Salone pontua como política e cultura configuram a trajetória das convicções liberais de Mesquita Filho e de como as infundiu na vida do jornal, com a sua forte personalidade. Foi o que consolidou o jornalismo do Estadão como uma atividade intelectual e cultural com uma dimensão educadora. Para isso contribuíram a sua preocupação e empenho com a formação e a educação. Delas defluíram o seu decisivo proceder, gestado no Estadão, que levou à criação da Universidade de São Paulo (USP).

Conformismo e adesismo não fazem um bom jornalismo. A inconformidade com as coisas e as situações do status quo é o que caracteriza o Estadão nos 150 anos de sua existência.

Para essa vis directiva, muito contribuiu a permanência do legado de Mesquita Filho, permeado pela inteireza de seu caráter e a coragem com as quais enfrentou no exercício do ofício de um jornalismo independente a prisão e o exílio. Norteou-o o seu entendimento de que a missão do Estadão era a de assegurar tanto o empenho na qualidade e objetividade da informação quanto o papel de um espaço próprio e distinto dos editoriais. Nestes, inspirou-se por um liberalismo de dissonâncias, e não de harmonia, para recorrer a uma distinção de José Guilherme Merquior, voltado para contribuir, a partir de sua leitura do Brasil, para o aperfeiçoamento das instituições.

O seu legado, cultivado pela sua família, permeia a continuidade dos editoriais do Estadão, que deles faz uma referência singularizadora no âmbito da imprensa brasileira.

Meu pai era um grande leitor de jornais. Assim, adquiri desde jovem o hábito paterno da leitura matutina de jornais. Em função dele, a partir do meu tempo de estudante secundário, aprendi a admirar o Estadão.

O primeiro impacto e o que perdurou no tempo e na lembrança foi o apreço pela abrangente e qualificada cobertura pelo jornal da política internacional. Por isso considero que minha iniciação nessa temática, que assinalou meu percurso, se fez pela leitura do Estadão, pautado pelo profundo interesse que tinha Julio de Mesquita Filho sobre a matéria. Seguiu, nesse sentido, a lição do seu pai, pois a Julio Mesquita se devem abrangentes boletins semanais que dedicou no jornal à apreciação dos acontecimentos da 1.ª Guerra Mundial.

Desse DNA do Estadão, vali-me dos contatos com a redação do jornal quando me dediquei como professor universitário ao estudo dos convênios internacionais do café. Por sugestão do meu pai, procurei dr. Frederico Heller, responsável no jornal por sua importante e inovadora seção econômica. Heller era profundo conhecedor da política nacional e internacional do café e recorri aos seus subsídios e conselhos nos meus trabalhos. Ele apreciou com boa vontade o meu interesse. Acolheu no Estadão de 28/1/1973 um dos meus textos iniciais sobre a matéria: O Direito no comércio internacional. Devo à abrangência dos seus interesses a publicação na sua seção em 19/4/1975 do meu primeiro artigo na grande imprensa sobre Hannah Arendt.

Esse foi o ponto de partida da minha colaboração com o jornal. Esta se adensou e se avolumou no correr dos tempos graças a Ruy Mesquita, na regularidade, iniciada em 2003, dos meus artigos para o pluralismo do Espaço Aberto do Estadão.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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