Os sintomas mais evidentes da atual crise econômica mundial surgiram primeiro nos financiamentos imobiliários de alto risco, os subprimes, nos EUA. Mas uma crise tão ampla e tão complexa não viria apenas de uma causa isolada. Assim, percebeu-se que teve raízes num processo assentado no forte crescimento da economia e do comércio mundial, o qual gerou grandes superávits comerciais e reservas em vários países, daí surgindo enorme oferta de recursos e de crédito a juros baixos. Esta produziu ampla valorização de ativos e grandes estoques de financiamentos pouco criteriosos que vicejaram num ambiente de frágil regulamentação. Também vieram produtos financeiros exóticos mal sustentados pelo capital próprio dos bancos e seguradoras que os ofereciam. O esquema desmoronou quando a valorização de ativos foi percebida como excessiva, ao mesmo tempo que devedores se viam inadimplentes, como nos subprimes, e investidores e depositantes pediam seu dinheiro de volta, levando instituições financeiras a dificuldades. Daí a crise, em que o medo de emprestar e o receio do endividamento são hoje generalizados, prejudicando a produção de bens e serviços em geral. Qual o seu tamanho e quando terminará? São grandes questões, mas não há respostas ou, quando existem, são rápidas e não confiáveis. O que se passa lembra um desses incêndios florestais em montanhas, que a televisão vez por outra mostra. Fogo morro acima é dificílimo de controlar. Fisicamente segue em sentido contrário ao da gravidade e quem deveria combatê-lo de frente está embaixo, e não em cima. Sem extirpá-lo, os bombeiros - no caso, os governos e seus bancos centrais - procuram contê-lo abrindo clareiras e nos países mais ricos helicópteros e aviões jogam grandes volumes de água, que lembram as injeções de liquidez e de crédito dessas autoridades. Mas, como nos incêndios, o sucesso é limitado. Assim, a crise deve continuar e as previsões de dimensão e de término não passam do que em inglês são educated guesses, adivinhações de pessoas bem formadas, mas ainda assim adivinhações. As notícias dos EUA, onde está o incêndio maior, continuam impressionantes, como nos jornais de ontem, ao reportarem que em fevereiro as vendas de automóveis caíram mais de 40% em relação ao mesmo mês do ano passado. As da General Motors caíram 52% . Como disse Machado de Assis, tudo é incrível antes de divulgado. Quanto ao PIB dos EUA, a última adivinhação que vi foi a da edição corrente da revista The Economist, de que vai cair 2% em 2009. Quatro meses atrás, previa um aumento de 0,6%. A crise é fogo morro acima; as taxas do PIB, água morro abaixo. No Brasil houve a ilusão do desacasalamento relativamente aos EUA e outros países mais afetados. Na versão presidencial, viria apenas uma marola. Ora, essa conversa de acasalamento, ou de ausência dele, é um sim ou não, enquanto a dependência entre países admite infinitas situações intermediárias, mais ou menos intensas. Felizmente, ainda se mantém a perspectiva de que no Brasil, hoje menos dependente, os efeitos serão menos graves, pois que sustentada em análises bem fundamentadas e em fatos que a evidenciam. Como o de que também em fevereiro a venda de automóveis e comerciais leves superou a de igual período do ano passado em 0,15%, um resultado evidentemente não tão ruim quanto o ocorrido nos EUA. Os jornais de ontem também informaram que o governo decidiu prorrogar por mais três meses a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre veículos vendidos. É mais um caminhão-pipa a aliviar o incêndio, e esses três meses não são apenas adivinhação, mas também wishful thinking, com o governo pensando o que deseja. Quanto ao nosso PIB em 2009, as adivinhações também mostram uma taxa em declínio. A última que vi, do relatório Focus de 27 de fevereiro, do Banco Central, diz que será de 1,5%, mas quatro semanas antes falava de 1,8% e quatro meses atrás ficava em 3%. Nos EUA paira uma enorme incógnita, importantíssima pelo seu impacto tanto no medo de emprestar como no de tomar emprestado. É a citada crise do seu setor financeiro, inclusive seguros, até agora não resolvida e que continua produzindo sobressaltos à medida que maus balanços são conhecidos e sirenes de socorro são acionadas. Como o assunto é muito sensível, pois o conhecimento de seus diagnósticos poderia agravar a crise, inclusive mediante corridas bancárias, os graves problemas só se tornam públicos a posteriori. Mas, como não se divulgam informações em tempo real sobre os pacientes, surgem suspeitas de que a situação é grave ou até mais do que muitos imaginam. Isso é suficiente para manter ou agravar os referidos temores, gerando efeitos danosos, como a continuidade da contenção de crédito. Enquanto esse problema não for resolvido, o seu impacto continuará por lá, e repercutirá aqui. Não tenho ideia de quando terminará, mas o fim do incêndio terá necessariamente uma grande sustentação do lado real ou não-financeiro da economia. Por exemplo, a demanda de soja não vai cair indefinidamente. Passado o ciclo de alta dos seus preços, permanecerão vivas as necessidades a que o produto se destina, gerando assim a demanda correspondente, ainda que de volume mais baixo. Do lado da oferta, ninguém entregará soja de graça e os preços tenderão a se sustentar nos custos de produção. No âmbito geral da produção de bens e serviços, serão fundamentos microeconômicos como esses que determinarão o fundo do poço e, a partir daí, o movimento de recuperação da economia, este se não atrapalhado pela malfeitoria financeira já sabida ou por descobrir. Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda