Qual vai ser o método de comunicação do governo federal? Em meio a atropelos e contraditos, o espalhafato da campanha eleitoral vai rareando e alguns indicadores surgem no horizonte.
As “tuitadas desaforentas” sairão de fininho. O uso destemperado e randômico que o presidente brasileiro faz do Twitter - uma chanchada paródica do que em Donald Trump são latidos ameaçadores - não dará conta da tarefa de fazer governo e governados se entenderem. As manifestações de Bolsonaro no Twitter perdem credibilidade. O presidente tuíta uma sandice e os subordinados o desmentem no dia seguinte. Rotina. Um certo ar de “fez que foi e acabou não fondo” contamina a voz presidencial quando ela dá de falar por si. Não vale o escrito. O governo vai ter de encontrar outros suportes e outras instâncias se quiser conversar com a Nação.
Por onde seguirá? Os indícios estão aí. O principal deles, confirmado há poucos dias, é a decisão palaciana de não mais acabar com a EBC, a estatal responsável pela comunicação do Poder Executivo federal. Durante a campanha, em mais de uma ocasião o candidato Bolsonaro afirmou que fecharia a empresa, que não dá mais do que “traço de audiência”. Dias depois de eleito insistiu na bravata. Agora a cúpula do Planalto deixa claro, em mais uma volta atrás, que a EBC não será extinta coisa nenhuma. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo, declarou oficial e publicamente que a EBC prosseguirá, embora com reformulações.
A EBC é um aparelhão. Faz a produção diária do horário do Poder Executivo no programa radiofônico A Voz do Brasil, controla canais de TV, como a TV Brasil e a NBR (dedicada à transmitir atos oficiais do governo federal), além de várias emissoras de rádio, e mantém a Agência Brasil na internet. É uma potência considerável, com aproximadamente 2 mil funcionários - e com orçamento e infraestrutura comparáveis aos de grandes empresas de comunicação comercial no Brasil. Não era crível que as fileiras do bolsonarismo, tão obcecadas por apetrechos e tecnologias de televisão, internet e rádio, fossem simplesmente jogar pela janela um equipamento desse porte. Deu a lógica.
A história por trás da EBC também ajuda a entender o futuro que ela terá. A estatal, criada no início do segundo governo Lula a partir da fusão da velha Radiobrás com a TVE do Rio de Janeiro, nasceu com a promessa de fazer uma comunicação mais pública do que governamental. O adjetivo “pública”, nesse caso, significaria algo como “menos partidário”, “menos governista”, “mais independente”. Claro, a promessa não se cumpriu. Sob os governos Lula, Dilma e Temer, o (in)fiel da balança editorial pendeu invariavelmente para os pontos de vista convenientes ao governante de turno.
A despeito das ilusões (perdidas), a EBC nunca deixou de ser um megafone de adulação de autoridades. Por isso nunca teve relevância. Vem dando “traço de audiência”. Serviu para abrigar os bajuladores, e não para fortalecer ou estimular um debate público mais livre e mais informado. Resumindo, a EBC não alcançou qualidade porque não ousou alcançar independência. Sua história é a história de um fracasso, a despeito das boas intenções (e, posso assegurar, algumas das intenções eram realmente boas, desinteressadas e direcionadas para o bem comum, sem beneficiários particulares).
Herdada agora pelo bolsonarismo, a EBC que aí está vem na medida para o estilão autoritário dos ministros. Sua cultura interna ainda guarda o DNA do governismo que vicejou na Radiobrás dos tempos da ditadura. Note bem o improvável leitor: a cultura governista é a mesma, embora os seus vetores possam ter oscilado mais para a esquerda ou mais para a direita. Lapidada ao longo de décadas para cumprir ordens, a estrutura da EBC cumprirá as ordens do novo governo e poderá, sim, ser mais eficiente do que é. Mais obediente. Sob o comando dos generais hodiernos, emulará humores de uma certa prontidão militarista, com locutores prestes a bater continência diante das câmeras.
Não subestimemos o que vem por aí. A EBC reúne todos os ingredientes para fazer as campanhas difamatórias do MBL parecerem brincadeirinha de criança. A propaganda triunfalista e patrioteira atingirá um patamar, em visibilidade e decibéis, jamais imaginado por nossa vã filosofia, por nossa proverbial paranoia e por nossa incurável mania de grandeza.
Como pano de fundo, a inspiração que anima o arranjo dos vetores da comunicação do novo governo ecoa e recicla o conservadorismo mais atroz. Note-se, entre outros indícios, a ojeriza que vem sendo incentivada contra as liberdades individuais no campo dos costumes. Notem-se as investidas contra os afetos homoafetivos. Note-se o fanatismo religioso estatizado. Note-se a cruzada contra o politicamente correto.
Pergunta: por que, em seu discurso de posse, Bolsonaro teve de falar contra o socialismo num país que nunca teve nada de socialista e contra o politicamente correto num país pautado por preconceitos selvagens? Resposta: porque ele reivindica licença para perseguir não o socialismo, mas os socialistas, e porque ele não quer ser constrangido pela agenda dos direitos humanos. O politicamente correto é a boa educação (e o marco civilizatório) que ele rejeita. Ele quer salvo-conduto para descartar a urbanidade.
O que se projeta a partir dessa fantasia tanática - que o novo governo pronuncia e enuncia - é uma comunicação que não é politicamente correta no campo dos direitos e é politicamente regressiva e opressiva no campo dos costumes: novelas sem beijo gay, escolas sem educação sexual, adolescentes sem libido e pais de família com quatro trabucos trancados num cofre dentro do guarda-roupa. Este é um país que vai pra frente. Pátria amada. Ame-a ou deixe-a.
A EBC vai se erigir em casamata na guerra moralista da comunicação que se avizinha.
*JORNALISTA, EUGÊNIO BUCCI É PROFESSOR DA ECA-USP