Há muitos lugares em que as crianças não devem estar presentes. Em ambientes insalubres, em sessões de filmes para adultos, em cenas de briga de casal. Já se debate inclusive formas de preservá-las (parcial ou mesmo totalmente) do viciante mundo das redes sociais. Mas de Davos? Não. Elas não deveriam estar ausentes do Fórum Econômico Mundial, na cidade suíça em que a elite econômica mundial promove discussões anuais sobre as mais prementes questões da humanidade. E, no entanto, elas não estavam lá. Nem fisicamente – o que é compreensível – nem como objeto de estudo, preocupação, propostas de políticas.
Não é que estivessem preservadas. Pelo contrário, elas são as mais expostas.
Ainda antes do início do evento, a tradicional análise de riscos do fórum, o Global Risk Report, destacou a desigualdade como o fator de maior ameaça à estabilidade e ao progresso mundial. O documento é elaborado a partir da escuta de mais de 900 especialistas e análises que cruzam os riscos (afinal, nenhum deles ocorre isoladamente) e produzem, assim, um mapeamento que considera a forma como, combinados, são potencializados.
Na abertura do fórum, outra pesquisa, da organização Oxfam, confirmou o diagnóstico de risco ao revelar que a desigualdade econômica aumentou e continuará aumentando. Em ambos os relatórios, está-se falando principalmente das crianças: elas representam um terço da população mundial, mas são metade das pessoas em situação de extrema pobreza. A pesquisa revelava que elas estavam ali nos números, no polo mais extremo da régua. E é esta a razão do aumento da desigualdade: os ricos avançaram, os muito pobres ficaram no mesmo lugar. São dados e perspectivas alarmantes, ainda assim, não foram o suficiente para levar essas crianças para Davos.
Não é a primeira vez que as crianças são “esquecidas” nos painéis de discussão do Fórum Econômico Mundial (ou de outros encontros de lideranças mundiais, como o G-20). É comum que elas apareçam nos debates apenas como um tema periférico, como um público que “também” sofre o impacto desta ou daquela política, deste ou daquele contexto social.
Mas elas são as protagonistas! São as mais afetadas pela desigualdade; são o público com maior potencial de retorno do investimento (e investir em pessoas era um dos temas-chave deste ano); são o público com maior chance de tomar novos caminhos de crescimento para o mundo (outro dos temas prioritários de 2025); são o público que vai efetivamente viver no planeta que queremos preservar (mais uma das pautas do ano). Não há assunto tratado em Davos que não se beneficie de incluir as crianças, desde o começo da vida, no debate. Cuidar delas faz parte da resposta de todos eles – principalmente da redução da desigualdade.
Encontrar caminhos efetivos para os maiores riscos globais passa por nossa capacidade de colocar as crianças no centro do debate. A responsabilidade para que isso ocorra é de toda a sociedade, não apenas de quem trabalha diretamente com as infâncias, ou de quem anseia pelos próprios filhos, mas de todos que estão em busca de um desenvolvimento sustentável para o mundo. E o foco deve estar sobretudo nas crianças que estão na primeira infância, fase que vai até os 6 anos. Essa priorização é importante porque nessa idade as crianças são mais sensíveis aos estímulos ambientais, com impactos positivos ou negativos.
Há 25 anos, o economista James Heckman ganhou o Nobel da Economia por mostrar, com números, o retorno que a sociedade colhe ao investir na primeira infância. A cada US$ 1 investido, a sociedade recebe US$ 7 dólares de volta por economia no sistema de saúde, seguridade social, segurança e ganhos pelo aumento da escolaridade do indivíduo.
Desde então, inúmeros novos estudos confirmaram e expandiram nosso conhecimento sobre esses ganhos. E não há contraindicação, somente ganhos.
Um dado do Instituto de Métricas e Avaliações em Saúde americano exemplifica isso: crianças que sofrem com desnutrição até a idade de 3 anos estudam, em média, cinco anos a menos, ganham salário 10% menor e têm 33% menos chance de escapar da pobreza do que aquelas que não passaram por isso na mesma classe social.
Se, há décadas, vêm sendo produzidas evidências da importância de cuidar da primeira infância e dos efeitos deletérios da pobreza para o desenvolvimento humano desde o nascimento, por qual razão, então, a constatação do aumento das desigualdades não inspirou discussões, busca de soluções, alianças em prol dos cuidados com as primeiras infâncias, principalmente das crianças de famílias mais pobres?
Dentro de cinco anos, estaremos comemorando ou lamentando nosso desempenho para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Das 17 metas, 10 delas dependem diretamente do investimento nas primeiras infâncias, incluindo a de erradicação da pobreza, redução da desigualdade e fome zero. O tempo corre, mas é possível estancar os efeitos dessa negligência. Se, finalmente, colocarmos a criança no centro do debate e da construção de estratégias e soluções voltadas ao desenvolvimento humano e econômico, ainda temos chance de transferi-la do contexto de vulnerabilidade para o de potência e possibilidades. Cuidar de cada criança é cuidar do mundo inteiro – e é responsabilidade de todos.
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CEO DA FUNDAÇÃO MARIA CECILIA SOUTO VIDIGAL, YOUNG GLOBAL LÍDER DO FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL, É PRESIDENTE DO CONSELHO DO INSTITUTO ESCOLHAS