O Brasil é um dos países mais liberais do mundo quanto à soberania territorial. A Lei de Terras permite que até 25% do território nacional seja controlado por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras. Para garantir que o porcentual legal seja respeitado em cada município, a legislação exige que cidadãos ou empresas de capital majoritariamente estrangeiro obtenham autorização prévia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Congresso Nacional, antes de assumirem vastas extensões de terra no País.
A Lei 5.709/1971, recepcionada pela Constituição federal de 1988, está em vigor há mais de 50 anos e presume cuidados quanto ao uso do território. A legislação complementar e os cuidados regulatórios incluem esclarecimentos sobre o manejo das áreas, limites florestais e mesmo regulação de limites e fronteiras com outros países. Esses aspectos são essenciais para garantir que a soberania nacional seja respeitada, protegendo não só o território, mas também os interesses econômicos e sociais da população brasileira.
Mesmo com as controvérsias dos novos tempos do capitalismo financeiro, fato é que a legislação nunca impediu o investimento estrangeiro em setores estratégicos como o agronegócio brasileiro. O País foi o segundo maior destino de investimentos estrangeiros diretos no mundo em 2024, perdendo apenas para os Estados Unidos, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Até julho de 2023, pessoas físicas e jurídicas equiparadas a estrangeiras já haviam registrado legalmente a posse de cerca de ao menos 6,5 milhões de hectares no País, de acordo com os dados enviados ao Congresso Nacional pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Trata-se de uma área maior que a do Estado da Paraíba. Se fosse uma nação, o território controlado por estrangeiros no Brasil seria maior do que a Croácia, a Dinamarca e os Países Baixos.
Os números confirmam a tendência concessiva e até generosa da regulação brasileira, o que não significa eximir os estrangeiros de cumprir a legislação e os critérios a ela relacionados que, entre outras missões, ajudam a proteger a soberania territorial, alimentar, energética e ambiental. Mesmo as alterações legislativas mais recentes, como as que tiveram em 2020, ampliaram a possibilidade de “estrangeirização” de terras por meio de fundos financeiros, mas o Congresso não ousou alterar o parágrafo primeiro da lei de 1971, preservando as regras de aquisição e arrendamento de terra por estrangeiros.
Mesmo diante de tantos cuidados estatais, setores econômicos poderosos refutam a legislação com argumentos estritamente contratualistas. O caso emblemático é o da Paper Excellence, empresa sino-indonésia que assinou em 2017 um contrato para adquirir 100% das ações da empresa Eldorado Brasil Celulose. A Eldorado é uma empresa brasileira, com 5 mil funcionários e mais de 450 mil hectares de terras entre plantações de eucalipto e áreas de preservação. Trata-se de uma área cujo território equivale a 70 vezes a ilha de Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos.
Na Justiça e na imprensa, a Paper Excellence tenta configurar essa imensidão de terras como irrelevante no contexto do negócio. As autorizações do Incra e do Congresso não foram sequer solicitadas pela empresa estrangeira que, para suprir essa condição insanável no contrato de compra e venda, argumenta que a lei é obsoleta, demanda novas interpretações ou provoca insegurança jurídica. Eis que, confrontados com os cânones soberanos, foi barrada pelo órgão de regulação e pelo Judiciário brasileiro.
Ao mesmo tempo em que busca junto a congressistas e ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que alterem a validade constitucional da Lei 5.709, os pretendentes da Paper Excellence resistem a cumprir as leis nacionais e repelem seguidas decisões administrativas e judiciais.
A Paper Excellence já teve seus pedidos negados por todos os órgãos administrativos e judiciais correspondentes: o Incra, o Ministério Público Federal (MPF), a Advocacia-Geral da União (AGU), o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e até mesmo o Supremo Tribunal Federal. E mesmo com decisões convergentes e harmônicas destinadas a regular o controle fundiário do País, a parte inconformada acusa uma falsa dicotomia, a de que os investidores internacionais e os negócios jurídicos estrangeiros estariam ameaçados simplesmente pela aplicação de uma lei em vigor há mais de meio século para proteger a soberania nacional.
A realidade, no entanto, contradiz a argumentação instrumental. O Brasil segue a tendência de outras economias em desenvolvimento, a de crescer sem abrir mão de sua capacidade de regulação fundiária e de proteção territorial. Em lugar de uma falsa dicotomia, o que temos é justamente a regulação na forma devida, viabilizando os investimentos estrangeiros legais e garantindo a estabilidade e a confiança para atrair investimentos para o País. Não há segurança jurídica ou econômica sem soberania.
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ADVOGADA, DOUTORA EM DIREITO, É PROFESSORA DE DIREITO INTERNACIONAL DA UFRJ