Nova forma de espetáculo se candidata a estrelar uma dessas eletrizantes séries da atual indústria do entretenimento: a busca e apreensão arqueológica, às vezes acompanhada de prisão e humilhante exposição do sujeito passivo nas redes sociais. As autoridades da persecução penal agora exibem performance hollywoodiana à Indiana Jones: são caçadores da prova (no tempo) perdida. Com aval de juízes justiceiros, vasculham residências e escritórios – e arrastam tudo o que consideram relicário de ilícitos fossilizados, de celulares a computadores, arquivos e cadernetas de anotações, e de quebra expropriam qualquer quantia encontrada numa gaveta e mesmo obras decorativas que mais tarde um juiz mecenas doará, como herói local, a museus regionais.
O espetáculo – máxime quando já recebida a denúncia – convola mera aparência em delinquência. A “operação”, caprichosamente filmada – também são cinegrafistas! –, é logo divulgada nas redes sociais como prova do crime desvendado, dispensando, no julgamento sumário do coliseu digital, o devido processo legal e estigmatizando o investigado como réu já inapelavelmente condenado. A investigação é recente, mas os fatos em apuração mostram-se perdidos na poeira do tempo. Para citar um dos incontáveis casos recentes, o senador José Serra foi alvo de mandados de busca e apreensão na residência, no escritório e até no gabinete do Senado, a pretexto de os diligentes investigadores “pescarem” indícios de supostos ilícitos que datariam de 2014 – havia seis anos. Caso acabado de arqueologia probatória. Que dizer das últimas invasões de escritórios de advogados por fatos que datariam de quase uma década?
Tais blitzkriege não são apenas em ricas vivendas e escritórios afluentes, a cujas investidas se segue o gáudio “das ruas”, que condenam antes do julgamento. Seus alvos não são apenas os chamados “criminosos de colarinho branco”. A vítima também está no barraco, nas comunidades, nas favelas, nas ruas ermas da periferia, em que falta tudo menos, é claro, a truculência dos agentes do Estado. Nesses territórios onde os direitos não imperam, os abusivos mandados de busca são um luxo, substituídos pela violência na abordagem e pelo cano do fuzil. Casebres são invadidos, cidadãos, a começar pelas mulheres, são revistados sem pudor e objetos pessoais, apreendidos, se não espoliados, porque arrancados pela força das armas.
Por ocasião da intervenção federal no Rio de Janeiro, o Circuito Favelas por Direitos colecionou mais de 300 relatos de moradores de 15 comunidades que sofreram tais abusos – se já habituais por parte da polícia, daquela vez também praticados por integrantes das Forças Armadas lançadas na contraindicada tarefa policial. Um morador ilustrou a frequente violação de seu domicílio: “Tive meu portão arrombado diversas vezes. Agora eu coloco só uma correntinha, porque não dá para ficar consertando toda hora”. E outro: “Eu já tive dois celulares subtraídos por eles. Eles mandam tirar a senha. Olham as mensagens, os grupos e dependendo até levam mesmo”.
Como que a corroborar o sistemático desrespeito aos direitos e garantias individuais inscritos no artigo 5.º da Constituição, o Judiciário fluminense criou o “mandado de busca e apreensão coletivo” – sem o nome nem o endereço do investigado, como exigem os artigos 240 e seguintes do Código de Processo Penal. A pretexto de se procurarem criminosos, a favela inteira podia ser varejada. Afinal, é favela. As ruas não têm nome, as casas não têm número, logo, os moradores não têm direitos. Em boa a hora a 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a medida ilegal, arbitrária, desumana – repelida pelo grau de civilização alcançado pelo Direito Penal no Brasil, agora em marcha batida rumo à desconstrução.
Nesse retrocesso da legalidade civilizada, o alvo, mero investigado, ainda nem foi denunciado, nem é réu, mas já se torna vítima de medidas ora restritivas da liberdade, como ocorre no festival de prisões cautelares, ora de punições abusivamente antecipadas – cujo exemplo mais recente foi o afastamento do cargo de um governador de Estado, em decisão solitária de um ministro do STJ. Um magistrado, decidindo monocraticamente, sem o consenso de seus pares no órgão fracionário do tribunal, procedendo como um Salomão tropical, não a aplicar as leis existentes, mas a proclamar seus próprios éditos para o caso concreto, ignora a Constituição e desalinha o figurino processual. Aliás, como ensinou Shakespeare, “não há novidade no mal”, pois no STF determinado ministro já decretou a prisão de um senador da República no exercício do mandato, fora das estritas previsões da Constituição da República. Quanto falta faz a palavra viva de Rui Barbosa, a orientar os pretórios na busca da justiça e da equidade, como a lemos na bússola que é a Oração aos Moços: “Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada”.
ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO (PDT-SP)