Nelson entra no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O público explode em aplausos, mas logo o silêncio domina. Nos próximos 30 minutos, o piano e Nelson tornam-se um só. Dezenas de milhares de notas do Concerto n.º 4 de Sergei Rachmaninoff levam os presentes a uma experiência única. É como se a música estivesse fluindo diretamente do coração de Nelson para todos na plateia. Flávio é engenheiro de petróleo há mais de 15 anos e está no teatro. No intervalo, ele volta a pensar nos dados do novo reservatório. As informações geológicas e sísmicas sugerem um local para a perfuração. Mesmo sem uma explicação científica imediata, Flávio sugeriu à sua equipe estudar um local mais ao norte. O que ele ainda não sabe é que na próxima semana novos cálculos confirmarão a sua escolha como a melhor. Perto dali, no Hospital Souza Aguiar, Tais examina o traçado de um eletrocardiograma (ECG), exame cardiológico. Uma sutil irregularidade na onda T acende um alerta em sua mente. Ela sugere testes adicionais, que confirmam um diagnóstico raro: cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito. Sua intuição, adquirida em anos de prática, salvará esse paciente.
Essas e diversas outras situações do nosso cotidiano evocam nomes como intuição, pressentimento, dom, talento, instinto, “saber de cor”. Em comum, envolvem o processamento de dados armazenados em nossas memórias de forma inconsciente, sem a necessidade de interferência de nossa autoconsciência para a estruturação dos passos lógicos a serem seguidos. É a nossa inteligência inconsciente em ação. Curiosamente, aprender algo “de cor” significa aprender, de maneira tão íntima e profunda, que fica gravado no coração, no inconsciente.
Há algum tempo estamos criando máquinas e algoritmos capazes de raciocinar inconscientemente. Algumas dessas técnicas são chamadas de inteligência artificial (IA). E da mesma forma que nossa intuição, o raciocínio e a resolução de problemas via IA resultam do processamento inconsciente de imagens, sons, textos e outros tipos de dados, a criação e treinamento dessas máquinas se assemelham à forma como nós aprendemos, por exemplo, por experiência ou reforço para a criação de memórias associativas ou via pré-codificação, quando parte dessa capacidade intelectual já está embutida na máquina, espelhando, assim, a função de nosso código genético. Afinal, já nascemos com nossos instintos mais básicos de sobrevivência à disposição.
Hoje, nas mais diversas áreas, temos máquinas nos superando. Seja na análise de ECG de pacientes, na resolução de problemas matemáticos e de engenharia ou mesmo na geração de novos textos, imagens ou músicas. Mas essa superação não deve ser vista como algo surpreendente, pois é fruto de algo muito bem planejado. As máquinas são desenvolvidas com objetivos precisos e, para tal, são treinadas com uma quantidade de dados muito acima de nossas capacidades individuais. Estudos revelam que, em média, o ser humano consegue memorizar entre mil e 10 mil imagens distintas. Em contrapartida, as mais famosas IAs que geram imagens foram treinadas com bilhões de imagens. Em competições de contas rápidas, os ganhadores usualmente demonstram a façanha de realizar 30 operações matemáticas por segundo. Nesse mesmo segundo, nosso humilde celular faz bilhões de contas. Com esses números, fica mais fácil entender como nossas máquinas nos superam em tantas tarefas de raciocínio. Na verdade, esses dois pontos explicam por que a área de IA tem crescido tanto nos últimos anos. Isso se dá graças à criação de computadores cada vez mais rápidos aliada à facilidade de acesso a uma quantidade cada vez maior de dados.
Mas um último ponto merece atenção. Se você já teve a curiosidade de “conversar” e trabalhar com as IAs geradoras de textos mais modernas, pode observar que elas conseguem fazer inferências lógicas bastante complexas e resolver alguns problemas inéditos. Isto é, problemas para os quais elas não foram previamente treinadas. Nesse sentido, padrões complexos de raciocínio emergem de uma máquina de inteligência inconsciente. Isso tem despertado a curiosidade e muito debate entre estudiosos da mente humana. Afinal, por muito tempo, a inteligência avançada humana foi associada à autoconsciência: “Penso, logo existo”. Mas, aqui, nossas máquinas conseguem essa façanha de forma inconsciente. Ou seja, não há um “eu” por trás de toda essa inteligência. Isso sugere que a consciência e a inteligência são ferramentas cognitivas totalmente distintas. O que é bastante intrigante para muitos. Além disso, tudo leva a crer que não seremos mais as criaturas mais inteligentes do planeta. Se é que algum dia fomos. Porém, não se preocupe. Manteremos o prêmio de consolação por sermos as mais autoconscientes.
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PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA, É PESQUISADOR NAS ÁREAS DE MODELAGEM COMPUTACIONAL E ENGENHARIA BIOMÉDICA