Já se tornou lugar-comum dizer que estamos a viver tempos estranhos. E isso parece ser triste verdade no cenário vivido pela advocacia e pelo direito de defesa. O final de 2024 agudiza essa questão, sinalizando para a comunidade jurídica uma profunda reflexão sobre o papel das instituições e se há espaço para releitura das funções atípicas do Estado no atual contexto político e social. Vivenciamos uma crise institucional sem precedentes a merecer a coragem da prudência.
O Judiciário, sob a justificativa de suprir a inércia legislativa, propõe interpretações conforme em assuntos sensíveis para a comunidade jurídica, como, por exemplo, a inconstitucionalidade ou não do artigo 19 do Marco Civil da Internet. E sob a rubrica do exercício de função atípica, cria regras regimentais de constitucionalidade duvidosa, restringindo a atuação dos advogados em sustentação oral, privilegiando regras internas em detrimento da lei federal.
O Legislativo, pressionado pela pendência de julgamentos, age açodado e acelera ritos sem prévia e necessária discussão com a comunidade jurídica em temas indiscutivelmente sensíveis.
Esse jogo de freios e contrapesos poderia ser esperado se tais iniciativas não gerassem tamanha sensação de insegurança econômica e jurídica frente às expectativas dos próximos passos de cada Poder.
O que chama a atenção, ponto de tensão entre Judiciário e advocacia, é a edição da Resolução n.º 591 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, ao querer “regular” a matéria, dispôs sobre requisitos mínimos para o julgamento de processos em ambiente eletrônico no Poder Judiciário.
Ainda que duramente criticados, os julgamentos telepresenciais síncronos representam uma realidade inexorável. Os que elogiam sustentam que se permitiu maior racionalidade e velocidade no atendimento e julgamento, sem prejudicar advogados que, mesmo distantes, podem exercer seu mandato.
Em uma leitura desavisada, a Resolução 591 aparenta ter como objeto julgamentos eletrônicos em ambiente virtual de forma assíncrona. Ou seja, aqueles em que os jurisdicionados apenas ficam sabendo do “resultado” ao final. O leitor menos atento teria a sensação de suposta evolução, pois a mesma resolução impõe que no “julgamento eletrônico” (assíncrono, portanto) o relator deverá inserir a ementa, o relatório e o voto no ambiente virtual para divulgação pública no início da sessão de julgamento. Prática que não é seguida pelos tribunais estaduais, por exemplo.
E, iniciado o julgamento, o órgão colegiado terá até seis dias úteis para se manifestar (artigo 5.º). Os votos dos demais julgadores serão publicados em tempo real, à medida que forem proferidos, no sítio eletrônico do tribunal. Até aí, uma falsa sensação de publicidade.
Ocorre que, ao tratar do “julgamento virtual assíncrono”, o artigo 8.º determina que “não serão julgados em ambiente virtual os processos com pedido de destaque feito, por exemplo, por ‘qualquer das partes’, desde que requerido até 48 horas antes do início da sessão e deferido pelo relator”.
Ou seja, a excepcionalidade está, de fato, nas mãos do jurisdicionado ou se trata de uma questão a ser apreciada pelo relator? Trata-se de decisão vinculativa (“se houver pedido da parte o julgamento assíncrono não ocorre”) ou é necessária uma justificativa e correspectiva fundamentação? Tal lógica está de acordo com o princípio da publicidade e do devido processo legal? Ora, uma resolução administrativa que dá margem duvidosa de aplicação a um preceito constitucional não pode ser aplicada.
Para piorar, mantido ou sequenciado o julgamento virtual assíncrono (que pode se tornar a regra), nas hipóteses de cabimento de sustentação oral, fica facultado aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta em até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual ou prazo inferior a ser definido pela presidência do tribunal (artigo 9.º).
Ou seja, sustentações gravadas, assíncronas, ficarão em algum lugar à disposição do julgador para consulta, tornando-as peças obsoletas ou de menor importância no exercício da defesa.
Há flagrante retrocesso no princípio da ampla defesa com a Resolução 591, que entrará em vigor em 3 de fevereiro de 2025. As novas disposições, questionáveis, podem inviabilizar a devida participação do advogado e a efetividade das sustentações orais nos tribunais, mostrando-se fundamental sua revisitação nas esferas cabíveis, sob pena de prejuízo da plena atuação profissional. A advocacia deve obrigatoriamente ser ouvida sobre os limites de tolhimento de sua atuação, ainda que em prol de uma celeridade cercada de boas intenções.
Qualquer cerceamento de defesa é incompatível com o Estado Democrático de Direito, sendo que defesa só pode ser considerada como tal se exercida plenamente. Por tais razões, e em função da exigência da coragem da prudência, basilar se torna a suspensão imediata dessa resolução, a permitir uma ampla discussão com a advocacia. Somente, então, ponderar-se por soluções pelas partes acordadas.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, EX-PRESIDENTE DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO (2019-2021, 2022-2024); E ATUAL PRESIDENTE DO IASP