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Opinião|As lições de um ano de guerra na Ucrânia

Este período parece descortinar a suprema incivilidade do estado geopolítico do momento que vivemos. Nesse sentido, o silêncio pragmático custa caro no longo prazo

Neste 24 de fevereiro de 2023, a comunidade internacional completa um ano assistindo a uma das mais violentas agressões armadas conduzidas por um Estado contra outro, eufemisticamente chamada de “operação militar especial”. Como descrito nas páginas deste Estadão por diversos articulistas, não há razão jurídica que sustente tal invasão; as violações às leis da guerra ocorreram de forma brutal e a comunidade internacional não encontrou instrumentos eficazes para refrear os ímpetos expansionistas do Kremlin.

Se “a experiência é um troféu composto por todas as armas que nos feriram”, como escreveu certa vez um célebre e sábio imperador romano, talvez a marca de um ano de falência das instituições internacionais em apaziguar a guerra e as feridas deflagradas por ela sobre o direito das gentes possa oferecer algum tipo de reflexão sobre o que é possível – ainda que tristemente – apreender com um ano de conflito.

A primeira e mais óbvia lição reforçada em qualquer conflito internacional é que aqueles que sofrem a agressão dificilmente são aqueles que decidiram iniciá-la por suas obscuras e (por vezes) não tão opacas escolhas de interesse nacional. Se Moscou talvez esperasse uma campanha rápida, que serviria ao canto das glórias ao público interno, rapidamente viu-se numa situação muito mais complexa em que mesmo seus mais antigos e estratégicos aliados não puderam oferecer suporte. Sua população viu-se afetada por sanções. Com a guerra, sofreram os exércitos de ambas as partes, a população civil de um Estado devastado, as cadeias de produção globais. Sofreu, principalmente, toda uma geração de um povo que não esquecerá o sentimento de insegurança gerado pela constante ameaça de mísseis riscando os céus rumo à sua capital.

Não há nada de novo no front ao pensar que conflitos internacionais continuam acontecendo por procuração – em que os lados no conflito não se enfrentam diretamente, mas auxiliam terceiros que, por sua vez, se envolvem num emaranhado de batalhas em diferentes frentes. Para evitar uma grande escalada e a destruição reciprocamente assegurada por armas nucleares, as grandes potências agem de forma indireta sobre os envolvidos no conflito. A ameaça nuclear espreita como lembrança da capacidade destruidora de alguns poucos Estados. Enviar armas? Sim. Expulsar diplomatas? Sim. Mísseis escapando ao território de outros Estados? Melhor ignorar. Uma ação direta? Impossível cogitar.

Mas um ano de guerra na Ucrânia mostrou que nem só de tanques e da pena de diplomatas se faz um conflito. A guerra, mais do que nunca, é híbrida, com exércitos invisíveis sentados em suas poltronas tentando causar o maior dano possível a todos aqueles que, de algum modo, se posicionam de um lado ou de outro do conflito. Isso é alarmante. A ciberguerra não distingue entre combatentes e não combatentes. Ela afeta todos indistintamente. Assim, a guerra se torna ainda mais intolerável. Ela não é mais feita para que um dos grupos saia vitorioso. A guerra se transforma num incontrolável processo voltado a causar o máximo de dano e instabilidade possível. Busca-se o caos para que, a partir do caos, num paradoxo abominável, as partes cheguem à mesa de negociação.

Se uma das partes apostava em que o inverno iria soberanamente conduzir ao fim do conflito, em razão das restrições sofridas por todas as populações e bolsos nele envolvidos, essa hipótese parece evanescer à medida que a estação se aproxima de seu fim. Mas, se o inverno passou, fica a lição de que a guerra compele nações rumo ao carvão, ao gás, ao petróleo. Sabe-se que essas alternativas hoje não são as escolhas ótimas para que os compromissos de um mundo rumando para sua autodestruição ecológica sejam respeitados.

Mas o Direito é a menor preocupação de uma guerra. Apesar de todas as tentativas, apesar da decisão da Corte Internacional de Justiça, apesar de todos os Estados que efetivamente participaram no procedimento indicando sua visão sobre o Direito Internacional (e diversos Estados preferiram não fazê-lo), apesar das resoluções e dos atos nos diferentes órgãos da ONU, a guerra ainda persevera. A guerra não confirma que o Direito é falho. Ao contrário, é somente por meio dele que podemos deduzir as lições da guerra. Mas, se a guerra nada mais é do que a política conduzida por meios menos civilizados, um ano de guerra parece descortinar a suprema incivilidade do estado geopolítico do momento que vivemos. Nesse sentido, o silêncio pragmático custa caro no longo prazo.

A nova ofensiva russa que se avizinha é um sinal de que lições não foram aprendidas. Um governo ameaçadoramente isolado não arrefece. O que não muda em todas as guerras, contudo, e lugubremente, é o tamanho do sofrimento das populações em jogo. A guerra chegará ao fim? Sim. Mas esse fim depende de esforços maiores do que aqueles até então envidados para seu fim.

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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, PESQUISADOR VISITANTE NA UNIVERSITÉ PARIS I – PANTHEÓN SORBONNE, É MEMBRO DA DIRETORIA DO RAMO BRASILEIRO DA INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION

Opinião por Lucas Carlos Lima