Um chamado à reflexão bate às portas da rede de saúde suplementar do Brasil e daqueles que a ela recorrem. Temos atualmente inúmeros complicadores sistemáticos, a começar pelos altos valores das anuidades, cada vez mais inacessíveis.
Dos cerca de 50,7 milhões de usuários em 2023, cerca de 42 milhões são de planos coletivos e/ou empresariais. Todos afetados fortemente pela variação dos índices de sinistralidade, aplicados sempre que qualquer um dos beneficiários aciona o plano de saúde por algum motivo, seja por consulta ou tratamento.
O sinistro (hoje no patamar dos 90%) joga os valores das anuidades ainda mais para cima, convidando milhões de pessoas a deixarem seus planos, passando a depender 100% do Sistema Único de Saúde (SUS).
Outra agravante: a faixa de brasileiras(os) de 30 anos ou mais vem aumentando; representa 56,1% do total, conforme dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O porcentual era de 50,1% em 2012.
Com o envelhecimento populacional, aumentam os episódios de alta complexidade. O impacto financeiro cria riscos a todos, planos de saúde, prestadores e pacientes.
Construir uma saúde suplementar menos custosa e mais resolutiva requer a revisão de conceitos de gestão e investimento. Esforços, inteligência e maior destinação orçamentária devem ser direcionados em escala maior à prevenção e à educação em saúde, ou seja, à Atenção Primária à Saúde (APS).
Na Europa, por exemplo, a APS é a principal porta da rede suplementar. Cuida de forma singularizada, além de auxiliar os pacientes a gerir e tomar decisões sobre o bem-estar. No Brasil, pode contribuir ainda mais significativamente para a melhoria da qualidade de vida da população, segundo conclusão de relatório técnico da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de 2021. A propósito, de 80% a 90% das necessidades de saúde que um indivíduo tem ao longo da vida podem ser atendidas pela APS, segundo a Organização Pan-americana de Saúde (Opas).
Temos na assistência primária importante oportunidade para prevenir doenças e promover qualidade de vida. Estudos indicam a redução de internações estáveis, o que não apenas aprimora a assistência prestada, como também economiza recursos expressivos.
Dados da União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas) apontam que ao menos 5,2% das internações que acontecem no sistema de saúde foram classificadas como evitáveis – no total, são mais de 20 mil internações e quase R$ 400 milhões anuais que poderiam ser aplicados em outras áreas.
A APS não se limita a resolver problemas de saúde: envolve a promoção de hábitos saudáveis e auxilia na prevenção de enfermidades.
Por tudo isso, precisamos da atenção primária como base do sistema, não como produto isolado dentro da cadeia da saúde, o que ocorre agora. A APS deve estar na coordenação/gestão.
Haverá, a partir dessa premissa, a diminuição de gastos e maior grau de satisfação, porque as pessoas se sentirão efetivamente cuidadas. Os pacientes têm de se sentir seguros com suas escolhas de saúde e somente terão essa tranquilidade se guiados por uma equipe e um(a) médico(a) de família e comunidade.
Assim teremos, ainda, a diminuição de tempo de acesso, além de menos exames duplicados ou desnecessários na saga da procura por diversos especialistas até acertar o especialista focal. Hoje, a empresa de saúde perde e a pessoa que precisa de serviços também perde.
A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) desenvolve projeto batizado de Cuidado Integral à Saúde, lançado em 2021 em parceria com a Agência Nacional de Saúde Suplementar, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz e o Institute for Healthcare Improvement. Visa a colocar a disposição e implementar a APS em maior escala aos pacientes de planos e operadoras.
O objetivo é que os planos atuem de forma ativa, indo até o usuário, conhecendo seu histórico, antecipando-se no cuidado. Quinze operadoras integram este piloto, que prevê a certificação de boas práticas em APS para posterior implementação.
Por meio da Medicina da Família e Comunidade, do foco na atenção primária, moldaremos alicerces sólidos para a melhoria da saúde coletiva, com a consequente redução de complicações e de intervenções de complexidades secundária e terciária. O paciente será atendido de forma personalizada e humanizada, ao passo que o sistema terá a oportunidade de investir recursos com mais racionalidade.
Mais do que proporcionar economia de recursos no longo prazo, em especial no gerenciamento de pacientes crônicos, que representam grande parte dos custos de saúde, a APS pode desempenhar papel crucial na detecção precoce de várias condições e no incentivo a hábitos saudáveis, assim como já o faz no sistema público com sucesso.
Com uma rede suplementar organizada e saudável, garantiremos que os pacientes recebam por meio da APS o atendimento certo, no lugar certo e na hora certa.
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É PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DA FAMÍLIA E COMUNIDADE