Opinião | ‘Curtailment’: a culpa é da geração distribuída?

Dificuldades do setor elétrico brasileiro são fruto de um modelo mal desenhado em que há um distanciamento entre os agentes e a realidade da operação e planejamento

Por José Wanderley Marangon Lima

Recentemente, foi sugerido em um artigo que a geração distribuída (GD) tem responsabilidade sobre os cortes de geração enfrentados por usinas eólicas e solares centralizadas, devido à redução da carga no sistema. Essa análise requer revisitar o passado para identificar os verdadeiros culpados pelos prejuízos, que ultrapassaram R$ 1 bilhão em 2024.

Na transição para uma economia de mercado, no final da década de 1990, o Brasil separou geração e comercialização do transporte de energia, com a última ficando sob regulação econômica da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

No novo modelo implantado no Brasil, a geração passa a ser desenvolvida através de decisões dos agentes no mercado, enquanto que a transmissão definida pelo governo se materializa através dos leilões de transmissão. Na distribuição, a responsabilidade de expansão continuou sendo das distribuidoras. Enquanto só havia usinas térmicas e hidráulicas com um tempo de implantação longo, o governo conseguia expandir a rede elétrica para atender às necessidades do segmento de geração. Hoje, a transmissão não consegue acompanhar a velocidade de implantação das eólicas e solares, aparecendo restrições na rede.

Outro ponto importante é que, no Brasil, os geradores só são responsáveis pelas conexões até as subestações mais próximas do empreendimento, ficando a expansão interna da rede necessária para acomodar a nova geração por conta da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Ministério de Minas e Energia (MME) e Aneel. Esse tipo de conexão funciona se a tarifa de uso das redes de transmissão (Tust) e distribuição (Tusd) tem uma sinalização locacional eficiente, o que não ocorre. Essa condição provoca distorções na alocação de responsabilidade entre os agentes de geração.

Outro ponto é a forma como o preço da energia é formado no Brasil. O preço de liquidação de diferenças (PLD) é determinado por um modelo que otimiza o uso dos recursos hídricos, criando um “condomínio” que minimiza o risco hidrológico através do mecanismo de realocação de energia (MRE). Essa estrutura distanciou agentes geradores e consumidores dos impactos diretos da operação e do planejamento do sistema, contribuindo também para as distorções existentes.

A partir da década de 2000, surgiram incentivos à geração renovável, como descontos ao pagamento da Tust, empréstimos subsidiados, os quais impulsionaram a energia eólica no Nordeste. Na década seguinte, a energia solar também se popularizou, permitindo a geração distribuída em pequenas e grandes escalas. A escalabilidade da energia solar, capaz de possibilitar usinas de 1 quilowatt (kW) a 1 gigawatt (GW), trouxe aos consumidores a possibilidade de gerar sua própria energia, reduzindo a dependência do mercado regulado. No entanto, estamos observando resistências ao desenvolvimento dessa geração, principalmente a distribuída.

Com o aumento da geração renovável, a dependência de redes de transmissão mais robustas se tornou fundamental. O apagão de 2023 evidenciou deficiências nos modelos de simulação usados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), levando a cortes na transferência de energia entre regiões. Esses cortes são oriundos da incapacidade do sistema elétrico de lidar com o crescimento rápido da energia renovável, principalmente a centralizada que está longe dos centros de consumo.

Além disso, como as renováveis centralizadas não participam do MRE, pois não têm armazenamento, o ONS passou a priorizar o despacho de eólicas e solares, mas a falta de controlabilidade dessas fontes intensificou os problemas. Em 2024, os cortes por confiabilidade representaram 65% dos casos, enquanto 25% ocorreram por excesso de geração. A concentração de usinas renováveis no Nordeste, sem expansão adequada da transmissão, é um dos principais fatores por trás dos prejuízos.

A GD opera majoritariamente em redes de média e baixa tensão, enquanto os problemas de transmissão estão em redes de alta tensão. Além disso, a geração distribuída frequentemente atende à própria carga local, reduzindo a pressão sobre as redes de transmissão. Essa configuração contribui para um sistema mais eficiente, ao descentralizar parte do consumo de energia.

O argumento de que a GD deveria arcar com os custos do curtailment não se aplica, pois o corte é devido basicamente a problemas de confiabilidade da transmissão ocasionada pela geração maciça na Região Nordeste. Os cortes sugeridos se baseiam em premissas contábeis e não refletem a realidade física do sistema. Propostas para impor taxas aos consumidores de GD seriam injustas, dado que esses agentes já enfrentam tarifas desatualizadas e buscam reduzir a dependência do mercado regulado. Além disso, a GD não possui capacidade de influenciar as condições da rede de transmissão, como o controle de reativos, pois está localizada em redes de menor tensão e maior distância dos eventos de curtailment.

As restrições no escoamento de energia renovável centralizada derivam de atrasos na ampliação da transmissão. Essa situação foi exacerbada pela dificuldade no planejamento das redes e pela utilização de modelos de transmissão que subestimaram os fluxos de energia entre regiões.

Ademais, a falta de controlabilidade das usinas renováveis aumenta os desafios operacionais, especialmente em períodos de alta geração e baixa demanda. Essa condição limita a capacidade do sistema de integrar eficientemente novas fontes de energia, resultando em cortes recorrentes.

A série de dificuldades vividas no setor elétrico brasileiro, portanto, é fruto de um modelo mal desenhado em que há um distanciamento entre os agentes e a realidade da operação e do planejamento. Isso tem motivado a criação de um conjunto de regulamentação pelo Estado que muitas vezes se distancia da eficiência e da alocação justa dos custos de benefícios dos agentes. Decisões conjunturais emanadas no Congresso ou mesmo através da via judicial para tentar resolver os problemas acabam por intensificá-los, pois já está na hora de rever a estrutura do modelo criado na década de 1990 em função dos novos desafios.

Em outros países, onde o modelo de mercado é utilizado para tratar dos preços da energia e da valoração do transporte, o tratamento das usinas renováveis tem sido dado através de incentivos nos financiamentos, incentivos tributários ou descontos, sempre no sentido de não perturbar o modelo. Um exemplo típico é a Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês) nos EUA, em que o incentivo é dado diretamente aos agentes.

*

CONSELHEIRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE GERAÇÃO DISTRIBUÍDA

Opinião por José Wanderley Marangon Lima

Conselheiro da Associação Brasileira de Geração Distribuída