Opinião | Desafios do Estado como acionista controlador

Fomentar o debate sobre o tema pode ser importante ponto de partida para a evolução da governança das estatais no País.

Por Luciana Dias e Maria Clara Troncoso

Os motivos que autorizam um Estado a investir em empresas, o papel que ele exerce como acionista e como ele se organiza para cumprir essa função compõem o que se convencionou chamar de “política de propriedade estatal”. Há pelo menos 20 anos, organismos multilaterais e, em especial, a Organização paraCooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) recomendam o detalhamento dessas informações por escrito, de modo explícito e conciso, sujeitando os objetivos e a atuação do Estado a revisões periódicas e permitindo a identificação dos processos de tomada de decisão, dos agentes envolvidos e dos parâmetros a serem observados no exercício dos direitos e deveres do Estado como investidor.

No Brasil, as razões que autorizam o Estado a participar de empresas públicas e sociedades de economia mista são limitadas, pelo artigo 173 da Constituição federal, a “imperativos de segurança nacional” e “relevante interesse coletivo”. Para além desses parâmetros gerais, um conjunto intrincado de leis, normas infralegais e práticas não formalizadas reflete as justificativas para a criação de cada estatal, o modo com que o Estado exerce suas prerrogativas de acionista e a distribuição de competências entre diferentes órgãos para desempenho desse papel.

O tema ganhou novos contornos em 2016, com a Lei das Estatais, que promoveu avanços na governança interna dessas empresas. No entanto, há toda uma dimensão de governança pública no exercício da função de acionista que não foi tratada pela lei de 2016, relacionada, por exemplo, à decisão de o Estado ser e permanecer acionista e à forma como ele se organiza para exercer os direitos políticos e patrimoniais inerentes à propriedade de empresas.

A complexidade do arcabouço legal vigente e a existência de lacunas importantes são, em grande medida, reconhecidas pelo Estado brasileiro, que admite ter apenas uma política de propriedade implícita, e, nesse contexto, a discussão do tema é pertinente.

Para subsidiar este debate, a pesquisa Políticas de Propriedade Estatal, lançada em maio de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), buscou identificar, de um lado, os principais entraves relacionados ao tema no Brasil, a partir da análise da regulamentação e de entrevistas com atores envolvidos no exercício do poder de controle de empresas pelo Estado, e, de outro lado, examinar as orientações constantes das diretrizes da OCDE sobre governança corporativa de empresas estatais, bem como as políticas de propriedade de outros países.

Um dos pontos discutidos no estudo é o de que, no Brasil, a definição dos objetivos do Estado se dá de forma muito ampla e faltam procedimentos para transformar tais objetivos em metas específicas ou revisar periodicamente as razões que justificaram a criação e a manutenção de cada uma das empresas estatais.

Essas lacunas impõem dificuldades para a compreensão dos objetivos do Estado pelos agentes responsáveis pela tomada de decisões no âmbito governamental e pelos administradores das próprias estatais. Assim, mecanismos institucionais que permitissem o debate, o estabelecimento de metas e a revisão dos objetivos do Estado diante de casos concretos poderiam contribuir para maior precisão, coerência e transparência na tomada de decisão no dia a dia das empresas e para fins da avaliação da continuidade da participação do Estado na empresa estatal.

Além disso, a complexidade e o baixo grau de sistematização das regras que regem a atuação do Estado como acionista dificultam a compreensão dessa atuação e a consequente fiscalização e responsabilização dos agentes envolvidos. A revisão dessas normas poderia estabelecer mecanismos que, por exemplo, atribuíssem responsabilidades claras a agentes específicos, diminuíssem conflitos de interesses relacionados ao exercício de funções diversas por um mesmo órgão, bem como minimizassem influências políticas indevidas na tomada de decisão pelo Estado ou na interação entre este e a administração das investidas.

Cabe reconhecer, porém, que adotar uma política de propriedade que compreenda parte substancial das lacunas identificadas quando se compara o Brasil com países mais maduros em termos de boas práticas no exercício da propriedade estatal é bastante desafiador. A revisão desse conjunto de regras é politicamente delicada na medida em que necessariamente promove a realocação de poderes, competências e influências atualmente exercidos sobre empresas estatais.

Ainda assim, fomentar o debate sobre o tema, como quer o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa com seu estudo, pode ser um importante ponto de partida para a evolução da governança das empresas estatais no País.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA ESCOLA DE DIREITO DA FGV-SP, EX-DIRETORA E SUPERINTENDENTE DE DESENVOLVIMENTO DO MERCADO DA CVM, DOUTORA E MESTRE PELA USP E MESTRE PELA UNIVERSIDADE DE STANFORD; E ADVOGADA, BACHAREL EM DIREITO PELA USP E MESTRE (LL.M) PELA UNIVERSIDADE DE COLUMBIA