O Brasil possui o maior sistema público de transplantes do mundo. Ainda assim, a cada ano, em média 3 mil pessoas morrem enquanto aguardam a cirurgia. No País, a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes é uma decisão da família após a morte do seu ente, não do doador quando em vida. É o que estabelece o artigo 4.º da Lei 9.434/1997 e o artigo 20 do decreto que a regulou (9.175/2017), que dispõe: “A retirada de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano, após a morte, somente poderá ser realizada com o consentimento livre e esclarecido da família do falecido”. Ou seja, cabe à família, após a constatação da morte do seu ente, decidir pela doação ou não dos órgãos do falecido. Esse é o modelo de consentimento atualmente adotado no País.
Apesar disso, a pessoa maior de idade pode registrar sua vontade de doar seus órgãos após a morte. É o que prevê o Provimento 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que traz a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano (Aedo).
A Aedo é emitida gratuitamente pelos cartórios e acessível por médicos autorizados, podendo ser revogada a qualquer tempo. O provimento do CNJ, entretanto, deixa claro: “A existência da Aedo não dispensa o cumprimento do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 9.434”. O artigo 4.º dessa lei, referido acima, condiciona a retirada de órgãos, tecidos, etc. de pessoas falecidas para transplantes à “autorização do cônjuge ou parente, maior de idade”. Ou seja, mesmo com autorização expressa do doador em vida, é da família a palavra final sobre a doação de órgãos do falecido.
É verdade que a existência da autorização pode encorajar a família a concordar com a doação. Afinal, foi esse o desejo claramente manifestado pelo doador em vida. Mas isso não basta. Primeiro, porque não são todos os potenciais doadores que sabem da existência da Aedo. Segundo, porque nem todos que conhecem a Aedo formalizam sua declaração (por inércia, por não concluírem o registro, etc.). E mesmo aqueles que o fazem poderão ter sua vontade revertida por um familiar. De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, a não concretização de doações por potenciais doadores decorre especialmente da recusa familiar (42% dos casos).
Daí a pertinência de se cogitar novos modelos de consentimento, que favoreçam a doação de órgãos após a morte. As razões para isso não são só humanitárias, mas também constitucionais. O artigo 199 da Constituição determina que “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante”. Note-se: a lei não deve ser indiferente ao assunto; segundo a Constituição, ela deve buscar “facilitar” a remoção e o transplante.
Assim, um modelo possível seria considerar a autorização formal manifestada em vida pelo falecido como suficiente à retirada e doação de seus órgãos, independente do parecer da família. Esse modelo reconhece a autonomia do indivíduo (juridicamente capaz) e respeita sua iniciativa e vontade de doar expressamente manifestadas em vida. Vai nesse sentido o projeto da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.
Vale mencionar também o Decreto 10.977/2022. Ele permite que o titular da carteira de identidade requeira a inclusão no documento de sua “disposição a doar órgãos em caso de morte”. Por que não tornar vinculante a decisão de quem buscou ativamente a inclusão da condição de doador em seu documento de identidade? Outra possibilidade seria perguntar ao requerente da carteira, no momento da renovação dela, se deseja registrar ali sua intenção de doar os órgãos após a morte. Nesse modelo, a resposta negativa do requerente não teria efeitos, mantendo-se a decisão final pela família (o que seria informado ao requerente no ato); já uma resposta positiva dispensaria o parecer da família após a morte, a menos que o próprio requerente revogasse sua disposição (na próxima renovação da carteira, por exemplo).
Outro modelo possível seria a manutenção do direito das famílias de recusar a doação, mas com a implementação de novas medidas voltadas a incentivá-la. Uma delas seria a atribuição de prioridade, na lista de espera de transplantes, às pessoas com parentes de primeiro grau que tenham doado órgãos após a morte. Assim, os familiares que devessem decidir sobre a doação dos órgãos do seu ente falecido teriam um incentivo a mais para aprovar a doação. Essa medida foi adotada por Israel e gerou aumento nos índices de autorização familiar, como relatam Cass R. Sunstein e Richard H. Thaler no livro Nudge.
Medidas como essa, porém, não podem dispensar “a discussão, o esclarecimento científico e a desmistificação do tema”, como diz a Lei 14.722/2023, que instituiu a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos. Como se sabe, a negativa da família à doação por vezes decorre de uma percepção prévia equivocada sobre a doação, de um atendimento ruim feito no hospital ou da demora do processo de captação dos órgãos. A decisão pela (não) doação dos próprios órgãos após a morte deve ser livre e consciente, mas não deveria decorrer de falhas de procedimento ou desinformação.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, ENFERMEIRA, MESTRE EM CIÊNCIAS DA SAÚDE PELA ESCOLA DE ENFERMAGEM DA USP, ASSISTENTE DE DIREÇÃO DA DIVISÃO DE CIRURGIA TORÁCICA DO INCOR-HCFMUSP; E DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, PROFESSOR DA FADI E FACAMP