A efetivação do Direito Internacional penal se deu a partir da necessidade premente de coibir graves violações cometidas: a ocorrência de conflitos armados acarreta extensa e sistemática destruição de vidas humanas, de patrimônio histórico e artístico, bem como de recursos naturais. Traçar a linha divisória entre o que possa ser “objetivo militar” e o crime internacional é sempre necessário.
Nesse sentido se inscrevem a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio das Nações Unidas, de 1948, e o tratado do Tribunal Penal Internacional (TPI), denominado Estatuto de Roma, de 1998, vigente desde 2002. O genocídio, na Lei n.º 2.889 de 1956, se tipifica tal como na convenção e reitera o Estatuto de Roma.
Assinado e ratificado pelos Estados, o tratado os obriga a cumprir o internacionalmente pactuado, bem como ter o conteúdo inserido no Direito Interno. Nesse sentido, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, vigente desde 1980, promulgada pelo Decreto n.º 7.030 de 2009, estipula no artigo 27: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu Direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”, sob pena de esvaziar e tornar inócuos os compromissos internacionalmente pactuados.
Não somente o Brasil assinou e ratificou tais tratados – comprometendo-se a aplicá-los, tanto interna quanto internacionalmente –, ademais, a Emenda Constitucional n.º 45 de 2004 acrescentou dois parágrafos ao artigo 5.º da Constituição, conferindo status constitucional aos tratados relativos aos direitos humanos, bem como o reconhecimento da constitucionalidade de Tribunal Penal Internacional do qual o Brasil seja parte. Inclusive com possibilidade de entrega de nacional a ser julgado perante esse tribunal. Se o País não quiser ou não puder julgar agente ao qual se imputam graves crimes internacionalmente tipificados, a primazia da proteção dos direitos fundamentais do ser humano e o imperativo de coibir e punir crimes internacionalmente tipificados não podem ser coarctados por expedientes obsoletos e escusos de insularidade procedimental.
A resposta do atual governo de extrema direita de Israel aos ataques de 7 de outubro foi além de todos os limites – mortes de mais de 50 mil palestinos, sobretudo mulheres e crianças, milhares de vítimas, soterradas sob escombros, nem computadas nem sepultadas –, com destruição sistemática de toda a Faixa de Gaza, reduzida a escombros, terra arrasada, nem sequer poupando escolas, hospitais e espaços onde centenas de milhares de deslocados foram forçados a se amontoar, em condições desumanas e degradantes, sem água, sem comida, sem abrigo, e sob ameaça fatal constante. E isso em busca de resultado impossível, como se tem visto e demonstra o cessar-fogo ora negociado.
Em 24 de dezembro de 2024, ingressou no Brasil soldado israelense que, nas redes sociais, publicou fotos e vídeos da explosão de oito prédios residenciais em al-Nuwairi, centro-norte de Gaza, sorridente com seus colegas, com explosivos e fios. Essa destruição em massa de propriedade civil configura crime de guerra – conferir artigo 8 (2, “a”, IV) do Estatuto de Roma.
Constatada a entrada no País, advogados acionaram a Justiça federal visando à investigação e medida cautelar para impedir destruição de provas e fuga do acusado. O proprietário de residência destruída pelo soldado se habilitou nos autos constituindo advogados.
Enquanto diligências investigativas eram encetadas, o soldado foi retirado do Brasil pelo governo israelense. Houve repercussão do caso na imprensa brasileira e internacional. Os advogados e a magistrada que determinou a abertura de investigação foram alvos de ataques e ameaças por israelenses e setores da extrema direita brasileira, em ataque às instituições democráticas.
O genocídio e crimes de guerra em Gaza impõem dever de investigar e punir à comunidade internacional. A primazia dos direitos humanos e a universalidade da jurisdição são colocadas à prova quando tais crimes são trazidos ao escrutínio do Judiciário nacional.
Deve o Estado brasileiro cooperar na apuração desses crimes e remeter ao TPI os achados das investigações, fortalecendo, assim, o compromisso com a Justiça global e a responsabilização por crimes que afetam a humanidade.
A construção de ordem jurídica internacionalmente vigente e aplicável é avanço civilizacional relevante, alcançado depois de graves violações cometidas no passado, e que infelizmente continuam a ser perpetradas. É preciso lutar contra a impunidade. E quando um Estado, em lugar de investigar, julgar e punir os responsáveis por tais atos criminosos, dá guarida a seus perpetradores, é preciso fazer valer os mecanismos de cooperação internacional e de universalidade da jurisdição. Onde quer que se encontrem os perpetradores, estes têm de ser investigados, julgados e punidos. Na ordem jurídica internacional se inscrevem como centrais a proteção internacional de direitos fundamentais bem como a tipificação e punição de crimes internacionalmente tipificados, como genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR TITULAR DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP); E PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (FFLCH) DA USP