Opinião | Genocídio e crimes de guerra

A primazia dos direitos humanos e a universalidade da jurisdição são colocadas à prova quando tais crimes são trazidos ao Judiciário nacional

Por Paulo Borba Casella e Paulo Sérgio Pinheiro

A efetivação do Direito Internacional penal se deu a partir da necessidade premente de coibir graves violações cometidas: a ocorrência de conflitos armados acarreta extensa e sistemática destruição de vidas humanas, de patrimônio histórico e artístico, bem como de recursos naturais. Traçar a linha divisória entre o que possa ser “objetivo militar” e o crime internacional é sempre necessário.

Nesse sentido se inscrevem a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio das Nações Unidas, de 1948, e o tratado do Tribunal Penal Internacional (TPI), denominado Estatuto de Roma, de 1998, vigente desde 2002. O genocídio, na Lei n.º 2.889 de 1956, se tipifica tal como na convenção e reitera o Estatuto de Roma.

Assinado e ratificado pelos Estados, o tratado os obriga a cumprir o internacionalmente pactuado, bem como ter o conteúdo inserido no Direito Interno. Nesse sentido, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, vigente desde 1980, promulgada pelo Decreto n.º 7.030 de 2009, estipula no artigo 27: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu Direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”, sob pena de esvaziar e tornar inócuos os compromissos internacionalmente pactuados.

Não somente o Brasil assinou e ratificou tais tratados – comprometendo-se a aplicá-los, tanto interna quanto internacionalmente –, ademais, a Emenda Constitucional n.º 45 de 2004 acrescentou dois parágrafos ao artigo 5.º da Constituição, conferindo status constitucional aos tratados relativos aos direitos humanos, bem como o reconhecimento da constitucionalidade de Tribunal Penal Internacional do qual o Brasil seja parte. Inclusive com possibilidade de entrega de nacional a ser julgado perante esse tribunal. Se o País não quiser ou não puder julgar agente ao qual se imputam graves crimes internacionalmente tipificados, a primazia da proteção dos direitos fundamentais do ser humano e o imperativo de coibir e punir crimes internacionalmente tipificados não podem ser coarctados por expedientes obsoletos e escusos de insularidade procedimental.

A resposta do atual governo de extrema direita de Israel aos ataques de 7 de outubro foi além de todos os limites – mortes de mais de 50 mil palestinos, sobretudo mulheres e crianças, milhares de vítimas, soterradas sob escombros, nem computadas nem sepultadas –, com destruição sistemática de toda a Faixa de Gaza, reduzida a escombros, terra arrasada, nem sequer poupando escolas, hospitais e espaços onde centenas de milhares de deslocados foram forçados a se amontoar, em condições desumanas e degradantes, sem água, sem comida, sem abrigo, e sob ameaça fatal constante. E isso em busca de resultado impossível, como se tem visto e demonstra o cessar-fogo ora negociado.

Em 24 de dezembro de 2024, ingressou no Brasil soldado israelense que, nas redes sociais, publicou fotos e vídeos da explosão de oito prédios residenciais em al-Nuwairi, centro-norte de Gaza, sorridente com seus colegas, com explosivos e fios. Essa destruição em massa de propriedade civil configura crime de guerra – conferir artigo 8 (2, “a”, IV) do Estatuto de Roma.

Constatada a entrada no País, advogados acionaram a Justiça federal visando à investigação e medida cautelar para impedir destruição de provas e fuga do acusado. O proprietário de residência destruída pelo soldado se habilitou nos autos constituindo advogados.

Enquanto diligências investigativas eram encetadas, o soldado foi retirado do Brasil pelo governo israelense. Houve repercussão do caso na imprensa brasileira e internacional. Os advogados e a magistrada que determinou a abertura de investigação foram alvos de ataques e ameaças por israelenses e setores da extrema direita brasileira, em ataque às instituições democráticas.

O genocídio e crimes de guerra em Gaza impõem dever de investigar e punir à comunidade internacional. A primazia dos direitos humanos e a universalidade da jurisdição são colocadas à prova quando tais crimes são trazidos ao escrutínio do Judiciário nacional.

Deve o Estado brasileiro cooperar na apuração desses crimes e remeter ao TPI os achados das investigações, fortalecendo, assim, o compromisso com a Justiça global e a responsabilização por crimes que afetam a humanidade.

A construção de ordem jurídica internacionalmente vigente e aplicável é avanço civilizacional relevante, alcançado depois de graves violações cometidas no passado, e que infelizmente continuam a ser perpetradas. É preciso lutar contra a impunidade. E quando um Estado, em lugar de investigar, julgar e punir os responsáveis por tais atos criminosos, dá guarida a seus perpetradores, é preciso fazer valer os mecanismos de cooperação internacional e de universalidade da jurisdição. Onde quer que se encontrem os perpetradores, estes têm de ser investigados, julgados e punidos. Na ordem jurídica internacional se inscrevem como centrais a proteção internacional de direitos fundamentais bem como a tipificação e punição de crimes internacionalmente tipificados, como genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR TITULAR DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP); E PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (FFLCH) DA USP

Opinião por Paulo Borba Casella

Professor titular de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP)

Paulo Sérgio Pinheiro

Professor titular aposentado de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP)