Hoje, 6 de fevereiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará os Recursos n.º 2.160.674/RS e n.º 2.153.347/PR, sob a relatoria do ministro Luiz Gurgel de Faria, afetados sob a sistemática de julgamentos repetitivos (Tema Repetitivo n.º 1.290), que tratará da discussão relativa à natureza jurídica dos valores pagos às gestantes afastadas integralmente de suas atividades laborais durante o período de calamidade pública decorrente da pandemia de covid-19.
A controvérsia transcende os aspectos fiscais e financeiros, refletindo diretamente na confiança dos cidadãos no Estado como agente promotor de políticas públicas e de proteção social aos grupos mais vulneráveis. O julgamento ocorre em um contexto marcado pelos desafios impostos pela pandemia de covid-19, que, além de ter custado a vida de milhares de brasileiros, impôs medidas de distanciamento social cujos impactos ainda reverberam na sociedade.
A questão em debate é se esses valores podem ser classificados como salário-maternidade, o que permitiria às empresas compensá-los com as contribuições patronais incidentes sobre a folha de pagamento, nos termos do parágrafo 1.º do artigo 72 da Lei n.º 8.213/1991, assim como a consequente exclusão da base de cálculo das contribuições previdenciárias, conforme restou decidido no Tema n.º 72 da repercussão geral.
Em oportunidades anteriores, as turmas do STJ já se manifestaram rejeitando a pretensão dos contribuintes, fundamentando suas decisões, principalmente, nos seguintes argumentos: (i) embora a imposição do ônus ao empregador possa parecer desproporcional ou desarrazoada, no contexto de calamidade pública, “os Poderes Executivo e Legislativo adotaram medidas para distribuir os custos desse enfrentamento entre os entes da Federação e a sociedade civil”; e (ii) a Lei n.º 8.213/1991 não prevê o enquadramento do afastamento previsto na Lei n.º 14.151/2021 como período abrangido pelo salário-maternidade, de modo que não há respaldo legal para a compensação pretendida. O reconhecimento desse direito, segundo o tribunal, “implicaria, por via transversa, a criação de benefício previdenciário pelo Poder Judiciário sem previsão legal nem dotação orçamentária própria”, em afronta ao parágrafo 5.º do artigo 195 da Constituição federal.
No entanto, é necessário advertir que há um erro de premissa fundamental e que altera substancialmente a conclusão a que se pode chegar.
A Lei n.º 14.151/2021 foi aprovada pelo Congresso Nacional às pressas e em caráter emergencial. A urgência da aprovação da medida já estava evidenciada na exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 3.932/2020, que lhe deu origem. Nas justificativas legislativas, destacou-se que institutos de pesquisa internacionais apontavam para a grave situação de óbitos maternos no Brasil em decorrência da covid-19. Além disso, o próprio Ministério da Saúde alertava para os riscos comprovados de infecção que ameaçavam a saúde das mulheres no ciclo gravídico-puerperal. Entidades médicas especializadas em obstetrícia também recomendavam o afastamento ou a realocação de gestantes durante o período da pandemia, considerando essa medida essencial para a proteção da saúde da gestante e do bebê.
Assim é que o legislador, de forma acertada, determinou, no artigo 1.º da referida lei, o afastamento das empregadas gestantes das atividades presenciais, permitindo a continuidade do trabalho por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outras formas de trabalho a distância, sem prejuízo da remuneração, como medida excepcional e estratégica para o enfrentamento da pandemia de covid-19, baseada no claro entendimento de que as gestantes pertencem a um grupo de risco em face da nocividade da doença.
De início, no entanto, verificou-se uma aparente lacuna na lei em relação à hipótese em que não há possibilidade de a gestante desempenhar a atividade de modo remoto, nos casos em que a sua função exige necessariamente sua presença física no local de trabalho.
Nem mesmo a introdução do parágrafo 2.º no artigo 1.º, pela Lei n.º 14.311/2022, que fala em “compatibilização” das atividades desempenhadas pelas empregadas gestantes, abarcou essa hipótese. A rigor, o dispositivo buscou conferir segurança jurídica à alteração de função da empregada gestante, sem que isso implicasse uma violação às normas trabalhistas – por exemplo, vedação ao desvio de função prevista no artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esse é o motivo pelo qual, inclusive, o dispositivo prevê que se deve respeitar “as competências para o desempenho do trabalho e as condições pessoais da gestante para o seu exercício”.
Nesse contexto, durante a pandemia de covid-19, os empregadores tinham, de um lado, a correta vedação de que empregadas gestantes exercessem suas atividades presencialmente, e, de outro, a impossibilidade material de compatibilização de determinadas atividades que demandam a presença física no local de trabalho com o trabalho remoto, como, por exemplo, profissionais da saúde cujo trabalho é essencialmente presencial e estavam em direta exposição ao vírus.
O artigo 394-A foi introduzido na CLT, pela Lei n.º 13.467/2017 (“reforma trabalhista”), para regular a hipótese em que a empregada gestante exerce sua atividade em ambiente insalubre, isto é, exposta a algum tipo de agente biológico, físico ou químico nocivo à saúde.
Verificada a hipótese acima, as consequências possíveis são, em primeiro lugar, o remanejamento da gestante para um ambiente salubre, sem prejuízo da percepção do adicional de insalubridade, antecipado pela empresa em posterior compensação com os débitos de contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de salário (parágrafo 2.º); ou, em segundo lugar, quando não for possível o remanejamento para um ambiente salubre, é considerada hipótese de gravidez de risco na qual a gestante é afastada integralmente e passa a receber de forma antecipada e estendida o salário-maternidade (parágrafo 3.º).
Assim é que, a rigor, não há lacuna na Lei n.º 14.151/2021 relativamente à hipótese em que não foi possível remanejar a empregada gestante para o trabalho remoto, mas é necessário que os julgadores interpretem sistematicamente o ordenamento jurídico, uma vez que a situação já está regulada de forma expressa e objetiva pelo parágrafo 3.º do artigo 394-A da CLT.
Portanto, não é a Lei n.º 14.151/2021, tampouco a Lei n.º 8.213/1991, que serve de fundamento jurídico à concessão do salário-maternidade nesse caso, mas a própria CLT, que já previa tal hipótese desde 2017. A premissa que conduziu os precedentes anteriores à conclusão de que o Poder Judiciário estaria criando, via interpretação, uma nova hipótese de concessão do benefício previdenciário – o que, de fato, é vedado pela Constituição federal – é equivocada e deve ser revista pela Corte Superior no julgamento de 6 de fevereiro.
Evidentemente, não há dúvidas de que o vírus Sars-CoV-2, ao menos no período da calamidade de saúde pública, foi um agente nocivo que serviu, inclusive, de pressuposto para a determinação de afastamento da Lei n.º 14.151/2021, assim como reconheceu o Poder Judiciário em diversas oportunidades.
Não por acaso, tais fundamentos foram suficientes para que a Turma Nacional de Uniformização (TNU) dos Juizados Especiais Federais, ao analisar o tema, concluísse que tais verbas, durante o período de afastamento e diante da impossibilidade de trabalho remoto, deveriam ser qualificadas como salário-maternidade (Tema n.º 335).
Por fim, quanto à repartição dos ônus decorrentes da pandemia entre o poder público e a sociedade civil, não custa lembrar que o empresário brasileiro arcou – e muito – com os efeitos deletérios das necessárias restrições impostas no período, tanto que a pandemia foi responsável por quatro a cada dez encerramentos de atividade, metade das empresas abertas no período fecharam as portas e o endividamento empresarial, por exemplo, na indústria, aumentou de forma abruta e acentuada.
Por isso, cabe ao Tribunal da Cidadania rever as premissas e fundamentos jurídicos – e os não jurídicos também – em relação ao tema. A proteção social à maternidade é um direito fundamental social (artigo 6.º, caput, Constituição federal) e um objetivo que norteia especialmente os âmbitos da Previdência e Assistência Social (artigos 201, inciso III, e 203, inciso I, Constituição federal), e que não pode se tornar um ônus tributário desproporcional.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADO, MESTRE EM DIREITO TRIBUTÁRIO PELA USP E ESPECIALISTA EM DIREITO TRIBUTÁRIO PELO IBDT, COM MBA EM GESTÃO TRIBUTÁRIA PELA FIPECAFI, PROFESSOR NO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO TRIBUTÁRIO DO IBDT; E ADVOGADO, MESTRE EM DIREITO TRIBUTÁRIO PELA USP E ESPECIALISTA EM DIREITO TRIBUTÁRIO PELO IBDT, COM MBA EM GESTÃO TRIBUTÁRIA PELA FIPECAFI, PROFESSOR NOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO DA FIPECAFI E DO IBDT