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Opinião|Iguais, diferentes – uma inspiração judaica

A condição humana prevalece sobre qualquer diferença ideológica, geográfica ou social

Por Ruben Sternschein

O vice-presidente Hamilton Mourão abriu seu encontro com parte da liderança judaica paulistana com a seguinte sentença: “Para mim, todos são igualmente brasileiros”. A gentil intenção da frase é clara: não há diferença religiosa no que diz respeito aos direitos básicos. Todavia reverbera no ar a pergunta silenciosa: e se não forem brasileiros? Qual o lugar dos imigrantes nesses direitos? E se algum brasileiro não tiver religião? E se não forem iguais por algum outro parâmetro? É necessário um grau de igualdade para a obtenção de alguns direitos?

Ao longo da História, os movimentos de direita apresentaram dificuldades na forma de enxergar e tratar quem não pertence à mesma nação. Os limites da promoção dos interesses nacionais, assim como do bem-estar dos “próprios”, e o que pode ser feito com outras nações em prol desses interesses são parte dos maiores desafios éticos desses movimentos. Limpezas raciais por meio de deportações e assassinatos em massa, como praticados pelo nazismo, foram sua pior expressão.

Também nos movimentos de esquerda a História mostrou essa dificuldade. “Todos (os animais) são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.” Assim denunciou George Orwell o comunismo stalinista, em 1945, no livro A Revolução dos Bichos. Britânico social-democrata, Orwell achava que Stalin havia traído os valores comunistas na implementação soviética que privilegiava os membros do partido, tornando-os “mais iguais” que os demais membros do povo. A cruel repressão a qualquer postura, praticada sob esse regime, que não estivesse alinhada com o sistema apareceu no livro 1984, publicado por Orwell em 1949.

O Brasil, como outros países, enfrenta sérios desafios nesse sentido. Dicotomias extremas impedem que se enxergue a igualdade por trás da diferença e se acolha a diferença dentro da igualdade. As rivalidades ideológicas e políticas aparecem como abismos irreconciliáveis que justificam deslegitimizações e perseguições.

O Talmude, fonte ancestral do judaísmo, compilado no século 5.º, relata uma discussão entre dois sábios sobre qual versículo seria mais digno de ser definido como o “grande princípio” da tradição judaica. O rabino Akiva indicou “ama a teu próximo como a ti mesmo” (Levítico, 19:18). Ben Zoma disse que “neste dia criou Deus o ser humano à sua imagem” (Gênesis, 2:4) seria melhor, pois não coloca a necessidade de ser próximo. Os próximos, assim como os “distantes”, os semelhantes assim como os diferentes são igualmente humanos e imagem divina. Em outras palavras, os diferentes e “distantes” merecem, assim, o mesmo grau de igualdade pelo fato de serem humanos. A condição humana prevalece sobre qualquer diferença, seja ideológica, geográfica ou social. A divindade serviria aqui para perceber a humanidade que iguala por cima e por dentro das diferenças. O lado divino de qualquer humano, no qual se apoia sua dignidade básica, não se relaciona com nenhuma afinidade particular. Ou seja, não é pela identificação partidária ou nacional que se deve reconhecer a igualdade que dá direito a ser diferente.

Uma alegoria judaica da mesma época reflete: “Qual é a diferença entre a criação humana e a divina? O humano cria moedas idênticas a partir de uma matriz. Deus criou humanos diferentes a partir de um Adão”. O pequeno texto captura, ao mesmo tempo, a essencialidade da igualdade e da diferença. Todos vêm da mesma matriz, têm semelhanças substanciais e, ao mesmo tempo, são extremamente diferentes. Todos buscam felicidade, sucesso, respeito, amor, reconhecimento, prazer e bem-estar, mas em contextos sociais diferentes, dentro de histórias diferentes, por meio de culturas, forças e fraquezas diferentes. Todos experimentam medo, inveja, amor, desamor, solidão, tristeza, raiva e alegria. Ao mesmo tempo, as razões, os contextos e os modos de expressão e realização dessas igualdades são únicos e, portanto, diferentes.

Nos dias que seguem, a comunidade judaica mundial celebra o ano-novo (Rosh haShaná) e, em seguida, o Dia do Perdão (Iom Kippur). Períodos de reflexão, essas festividades representam, ao mesmo tempo, o aniversário do mundo e da humanidade e a mais íntima introspecção do indivíduo. Uma das rezas centrais destes dias, repetida várias vezes, pede que enxerguemos o divino em todos e em tudo, a fim de que todos os membros da humanidade se tornem uma grande unidade colaborativa. Unidade sem uniformidade. Unidade dos diferentes. Essa é a chave do monoteísmo ético. Celebra-se o aniversário de todos ao mesmo tempo e por isso cada um é convocado a olhar fundo dentro de si, ciente de sua parte no concerto e no conserto geral. Sem afogar memórias com álcool. Em plena consciência. O ano-novo judaico chama-se também dia de recordação e dia de julgamento, em que se lembra de tudo e todos. Avalia-se o mundo, a humanidade e, principalmente, a parte do indivíduo nela. Não se trata de achar culpados nos que tendemos a definir como “os outros”. Trata-se de assumir a responsabilidade pela unicidade do instrumento pessoal que cada um toca na grande orquestra.

O filósofo franco-judeu Emmanuel Levinas aponta na sua reflexão política que, além de nações, interesses e políticas, o objeto dessa disciplina são povos, famílias e indivíduos, com iguais aspirações primárias e finais. É uma ferramenta circunscrita, cuja única justificativa é alcançar, na concretude, a profundeza dos ideais humanos. Em contraste, a paz entre dois povos, setores ou ideologias deve ser muito mais do que um acordo de interesses políticos entre duas nações. Deve ser a verdadeira pacificação de seus povos, famílias e indivíduos (Além do Versículo, 1980). Aquela que, no fundo, todos querem, por sua condição humana anterior e posterior a qualquer diferença.

No espírito destes dias do calendário judaico talvez caiba desejar ao Brasil, e a outros países que enfrentam polarizações essenciais, que no ano-novo consigam enxergar e valorizar a divindade humana do rival, a igualdade do diferente e a diferença do igual.

*DOUTOR EM FILOSOFIA JUDAICA PELA USP, É RABINO DA CONGREGAÇÃO ISRAELITA PAULISTA

Opinião por Ruben Sternschein