Opinião | Inflação: de dragão a gato domesticado

Quanto maior a estabilidade dos preços, menor é a necessidade de submeter o paciente Brasil ao remédio amargo chamado de aumento de juros

Por Cássio Besarria

O Brasil já foi conhecido como o País da inflação, e isso pode ser comprovado nos livros de história econômica e na vida das pessoas que acompanharam a implementação de vários planos econômicos fracassados - Plano Cruzado (1986), Plano Bresser (1987), Plano Verão (1989) e Plano Collor (1990) -, todos com o objetivo comum de combater a inflação.

Durante a década de 1980, conhecida como a década perdida, e o início dos anos 90, convivemos com as maiores taxas de inflação já registradas na economia brasileira. O símbolo do descontrole da inflação no Brasil era o dragão da inflação, uma referência ao tamanho do problema, a voracidade com que os preços subiam e a dificuldade de combatê-la. O problema era tão grave que chegamos a ter uma inflação anual de 2.477,15%, em 1993. Do ponto de vista prático, ter uma inflação descontrolada implica em perda de poder de compra da moeda, dificuldade de formalização e execução de contratos, aumento das desigualdades sociais, dificuldade de realizar planejamento orçamentário, entre outros problemas.

Além das consequências negativas da inflação, tínhamos mecanismos de combate conflituosos. Em certo momento, tínhamos planos ortodoxos voltados para a redução do déficit público, por meio da redução do desequilíbrio fiscal e da diminuição da emissão de moeda.

Por outro lado, tínhamos os planos heterodoxos, que se opunham aos cortes de gastos e argumentavam que o aumento do crescimento econômico melhoraria as condições fiscais. Sem falar nas políticas de controle de preços que geravam distorções, filas, conflitos e mercados paralelos para a compra de produtos como o leite. A título de registro, nesse período, ambos foram postos em prática e ambos falharam.

Foi com a implementação do Plano Real que o controle da inflação chegou. Grande parte do sucesso do Plano Real no combate à inflação se deveu aos avanços no processo de abertura comercial, acomodação dos preços relativos a partir da adoção da Unidade Real de Valor (URV), adoção de uma âncora cambial como referência para as expectativas, reservas cambiais suficientes para dar estabilidade à âncora cambial, elevadas taxas de juros e à redução dos subsídios econômicos.

Mesmo após o controle da inflação, é importante ressaltar que o aumento dos preços ao longo dos anos é algo esperado, impulsionado por diversos fatores, como reajustes salariais, restrições comerciais, quebras de safras e condições econômicas adversas. De forma ilustrativa, entre 1995 e 2024, a inflação acumulada no Brasil foi de 598,5%, o que significa que o poder de compra de R$ 1,00 em 1995 equivalia a apenas R$ 0,16 em 2024.

Qual seria, então, um nível de inflação tolerável? Para evitar que os aumentos de preços saiam do controle, o Brasil implementou, em 1999, o regime de metas de inflação. Nesse sistema, o Conselho Monetário Nacional (CMN) é responsável por definir a meta de inflação para cada ano, ancorando as expectativas dos agentes econômicos, dando transparência às decisões e estabelecendo limites desejáveis para a variação dos preços. Cabe ao Banco Central, por meio da taxa Selic como principal instrumento de política monetária, o papel de adotar as medidas necessárias, contracionistas ou expansionistas, para garantir que a inflação permaneça dentro da meta estabelecida.

Quando a inflação está acima (abaixo) da meta, o Banco Central acaba atuando por meio de aumentos (reduções) na taxa de juros. Observando os dados históricos, percebe-se que, em 26 anos do regime de metas, a taxa de inflação ficou fora dos limites estabelecidos em oito ocasiões, sendo: 2001, 2002, 2003, 2015, 2017, 2021, 2022 e 2024. Entre essas ocorrências, a única vez em que o valor da taxa de inflação ficou abaixo do limite inferior da meta foi no ano de 2017.

É nesse ponto que chegamos ao nosso segundo personagem: o gato doméstico. A analogia se deve ao fato de que, ocasionalmente, o gato muitas vezes foge de casa, conhece a vizinhança, mas logo retorna ao lar. Da mesma forma, a inflação brasileira, em alguns momentos, ultrapassa os limites estabelecidos pelo Banco Central, mas, em períodos subsequentes, tende a retornar ao intervalo tolerável.

O fato de a inflação ter retornado, historicamente, para o limite estabelecido pelo CMN não quer dizer que devemos deixar de ser vigilantes ao desalinhamento dos preços no Brasil. Quanto maior a estabilidade dos preços, menor é a necessidade de submeter o paciente Brasil ao remédio amargo chamado de aumento de juros, gerando efeitos contracionistas na economia (redução de investimento, desaquecimento econômico, aumento da inadimplência e possibilidade de aumento do desemprego).

Além disso, é preciso que as políticas monetária e fiscal sejam coordenadas, evitando o efeito conhecido como enxugar gelo. De um lado temos uma política monetária focada no controle da inflação e de outro temos uma política fiscal expansionista, podendo ser a causadora da inflação. Nesse sentido, a independência do Banco Central passa a ter um papel importante para que o conselho de política monetária possa atuar de forma isenta e independente dos ciclos políticos. Lembrando que um dos objetivos do Banco Central é assegurar a estabilidade e o poder de compra da moeda nacional.

O mais importante é que superamos o período do dragão da inflação e hoje somos considerados, quando o tema é inflação, um gato doméstico. Só precisamos ficar vigilantes para que o gato não fique cada vez mais encorajado e passe a percorrer distâncias cada vez maiores, retardando a volta para casa.

Opinião por Cássio Besarria

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Paraíba

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