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Opinião | O inquérito civil

Medidas precipitadas da Promotoria podem lesar interesse público e levar a perseguições injustas

Por Luiza Nagib Eluf

O Ministério Público de São Paulo sempre foi para mim motivo de orgulho. Minha aprovação no concurso público para promotora de Justiça foi motivo de grande emoção, tendo em vista que as mulheres admitidas na carreira ainda eram muito poucas naqueles idos de 1983. Posso dizer que “me criei” no Ministério Público, mesmo que os caminhos não tenham sido fáceis.

Posteriormente, em 1988, a Constituição federal consolidou as conquistas democráticas para a defesa da sociedade, dando ao Ministério Público atribuições mais abrangentes, dentre as quais a de propor ações civis públicas e de elaboração do inquérito civil preparatório, além da essencial independência para o exercício das novas e antigas atribuições. 

Atualmente, estou aposentada e passei a acompanhar a atuação da minha antiga instituição com o olhar de advogada. Exercer o ministério privado é muito difícil, ainda mais para quem sempre esteve do outro lado do balcão. Porém há compensações: a mudança de perspectiva traz novos conhecimentos, amplia a visão do Direito e conduz a grandes desafios.

Os fatos da vida real sempre terão mais de uma versão, mais de um entendimento ou ponto de vista, e a busca da verdade pode ter diferentes perspectivas. Embora a posição do Ministério Público deva ser, sempre, em defesa da sociedade e na observância da lei como custos legis (fiscal da lei), uma advogada tem de defender o interesse de seu cliente, desde que lícito, assegurando-lhe o devido processo legal. Ou seja, o Ministério Público é “parte imparcial”, a advocacia é só parte.

Na verdade, o objetivo principal dos profissionais da área do Direito deve ser sempre a busca da justiça, vaidades à parte. Ganhar ou perder é consequência do bom trabalho dos litigantes e do empenho dos julgadores na busca da verdade dos fatos. 

O Ministério Público tem hoje, dentre suas competências, não apenas a possibilidade de instaurar o Procedimento Investigatório Criminal (PIC) – uma espécie de inquérito policial presidido por um(a) promotor(a) de Justiça –, como também de instaurar o Inquérito Civil Público (artigo 129, inciso III, da Constituição federal), regulamentado pela Lei 7.347/1985, para apurar a eventual violação de direito coletivo, difuso e transindividual. Acontece que, quanto maior o poder, maior a responsabilidade. Existem mecanismos legais de contenção do exercício do poder investigatório do Ministério Público, traçados pela Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público n.º 23/2007. No entanto, por vezes se verificam interferências da Promotoria no exercício do poder discricionário do administrador público, eleito pelo povo, não raro provocando a paralisia da administração. A inobservância do balizamento e dos requisitos constantes da resolução acima citada pode tornar inviáveis obras e serviços de extrema relevância social, com sérios prejuízos para a população.

No entender de Hugo Nigro Mazzilli, procurador de Justiça também aposentado, em sua obra A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, “o inquérito civil deve ser instaurado e presidido com elevado senso de responsabilidade. Mas há, ainda, outros aspectos a considerar. Eventuais ilegalidades podem, de fato, ocorrer no inquérito civil, especialmente na sua instauração (por falta de justa causa, por exemplo), e na sua instrução (com determinação irregular de condução coercitiva, requisições ilícitas, indevida quebra do sigilo legal de informações, por vezes gratuita violação da privacidade dos investigados, etc.)”. Já Adilson de Abreu Dallari, no livro Limitações à Atuação do Ministério Público, muito acertadamente, observa que “não é dado à administração pública nem ao Ministério Público simplesmente molestar gratuita e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele talvez tenha participado”. Tais ponderações demonstram o quanto certas medidas precipitadas podem levar ao transtorno administrativo, lesivo ao interesse público, e a perseguições injustas, desviando-se dos objetivos nobres da Carta Magna de 1988.

São poucos os prefeitos que hoje trabalham sem uma ação civil pública sobre os ombros. A busca pela defesa da sociedade não pode provocar injustiças. Daí por que a avaliação da existência de justa causa para a persecução investigatória é de extrema importância também no inquérito civil, a fim de balizar a decisão de investigar ou não alguém.

O Ministério Público não pode intervir no poder discricionário do(a) administrador(a) público(a), impedindo a concretização de atos de gestão revestidos de interesse social. O órgão do parquet, como custos legis, deve ater-se apenas à análise da legalidade da medida adotada, não podendo intervir no mérito do ato administrativo discricionário, sob pena de incorrer em desvio de suas atribuições. Além disso, pode causar dano irreversível à imagem e à honra de pessoas físicas e jurídicas.

Outra questão a ser enfrentada é referente aos “vazamentos” de informações que deveriam ser objeto de apreciação somente nos autos do procedimento investigatório, não podendo ser ventiladas nos meios de comunicação sob pena de quebra de sigilo profissional e de alguém ser “condenado” antecipadamente pela opinião pública, sem provas cabais, manchando indelevelmente a reputação de investigados que, futuramente podem ser inocentados.

Do “lado de cá”, onde agora me encontro, ainda que sempre reverenciando a nobre instituição do Ministério Público, enxergo os fatos de uma perspectiva mais abrangente e procuro, apenas, continuar lutando pelo bom conceito da casa na qual passei grande parte da minha vida.

*ADVOGADA, EX-PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO, É AUTORA DE SETE LIVROS, DENTRE OS QUAIS ‘A PAIXÃO NO BANCO DOS RÉUS’

Opinião por Luiza Nagib Eluf